sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

# 6



Dez dias depois do fim da guerra, a minha irmã Laura atirou-se de uma ponte com o seu carro. A ponte estava a ser reparada: ela atravessou directamente o sinal de Perigo. O carro caiu na ravina de uma altura de trinta metros, esmagando as copas das árvores, cobertas de folhas novas, depois irrompeu em chamas e rebolou para dentro do pequeno ribeiro que existia ao fundo. Pedaços da ponte caíram sobre ele. Não restou muito de Laura, para além de fragmentos carbonizados.
Fui informada do acidente por um polícia: o carro era meu, e encontraram-me através da matrícula. O seu tom foi respeitoso: sem dúvida reconhecera o nome de Richard. Disse que os pneus podiam ter ficado presos numa linha de eléctrico ou que talvez os travões tivessem falhado, mas também se sentiu compelido a informar-me que duas testemunhas - um advogado aposentado e um caixa bancário, pessoas de confiança - afirmavam ter visto tudo. Diziam que Laura tinha virado o carro abrupta e deliberadamente e saltara da ponte com a mesma naturalidade com que se desce de um passeio. Tinham reparado nas suas mãos sobre o volante, devido às luvas brancas que usava.
Não foram os travões, pensei. Ela tinha as suas razões. Não que alguma vez fossem as mesmas de outra pessoa qualquer. Ela era completamente desumana nesse aspecto.
- Calculo que queira que alguém a vá identificar - disse. - Irei assim que puder.
Conseguia ouvir a calma na minha própria voz, como se estivesse à distância. Na verdade, mal conseguia emitir as palavras; tinha a boca dormente, todo o rosto rígido de dor. Sentia-me como se tivesse ido ao dentista. Estava furiosa com Laura por aquilo que ela tinha feito, mas também com o polícia por ter dado a entender que ela o fizera. Um vento quente soprava em redor da minha cabeça, madeixas do meu cabelo erguendo-se e rodopiando, como tinta entornada em água.
- Receio que vá haver uma averiguação, senhora Griffen - disse ele.
- Naturalmente - respondi. - Mas foi um acidente. A minha irmã nunca foi uma boa condutora.
Conseguia imaginar a forma oval e suave do rosto de Laura, o carrapito muito bem preso, o vestido que ela traria: cintado, com uma pequena gola redonda, de uma cor sóbria - azul-marinho, cinzento-aço ou verde-corredor de hospital. Cores penitenciais - mais como algo em que tivesse sido trancada, do que algo que escolhera vestir. O seu meio sorriso solene; a elevação espantada das suas sobrancelhas, como se estivesse a admirar a paisagem.
As luvas brancas: um gesto à Pôncio Pilatos. Ela estava a lavar as mãos de mim. De todos nós.
O que estaria ela a pensar enquanto o carro planava para fora da ponte, ficando depois suspenso sob a luz da tarde, cintilando como uma libelinha, naquele instante de prender a respiração antes do mergulho? Em Alex, em Richard, em má-fé, no nosso pai e no seu afundamento; em Deus, talvez, e no acordo que fizera com ele, fatal e triangular. Ou na pilha de cadernos baratos que devia ter escondido nessa mesma manhã na gaveta da cómoda onde eu guardava as minhas meias, sabendo que seria eu a encontrá-los.
Quando o polícia se foi embora subi ao andar de cima com o intuito de mudar de roupa. Para ir à morgue precisaria de luvas e de um chapéu com um véu. Algo para cobrir os olhos. Podia haver jornalistas. Teria de chamar um táxi. Devia também avisar Richard, ligar-lhe para o escritório: ele iria querer ter preparada uma declaração de pesar. Entrei no quarto: iria precisar de negro e de um lenço.
Abri a gaveta, vi os cadernos. Desatei o fio de cozinha que os prendia. Reparei que estava a bater os dentes e que me sentia gelada. Devo estar em estado de choque, decidi.
Do que me lembrei nesse momento foi de Reenie, de quando éramos pequenas. Era Reenie quem fazia os curativos dos arranhões, cortes e ferimentos menores: a mamã podia estar a descansar ou a fazer boas acções noutro lado qualquer, mas Reenie estava sempre lá. Pegava em nós e sentava-nos no balcão de esmalte branco da cozinha, ao lado da massa de tarte que estava a preparar ou da galinha que estava a cortar ou do peixe que estava a arranjar, e dava-nos um torrão de açúcar castanho para nos convencer a fechar a boca. Diz-me onde te dói, dizia ela. Pára de gritar. Acalma-te e mostra-me onde é.Mas algumas pessoas não conseguem dizer onde lhes dói. Não conseguem acalmar-se. Nunca conseguem parar de gritar.



Margaret Atwood - O Assassino Cego