quarta-feira, 29 de agosto de 2012

# 7



Como iria ele aguentar-se até à noite sem droga? Uma tal perspectiva inquietou-o; ia sofrer, bem o sabia, e preparou-se então, com calma, para o sofrimento. Tirou da algibeira uma saquita amarrotada, dela extraiu uma pastilha de hortelã e pôs-se a chupá-la lentamente, com aplicação. A pastilha não tinha o gosto acre da bolinha de haxixe, mas o simulacro bastou para o acalmar. Mais adiante, sorriu ao ver o inevitável mendigo acocorado lá no sítio dele. Dava-se invariavelmente o mesmo ritual: sempre que por ele passava, Gohar não tinha dinheiro; pedia-lhe por isso desculpa, e logo entre ambos se travava uma conversa,sempre de interesse saboroso. Gohar conhecia-o há muito e apreciava a sua companhia. Era um mendigo dum género bastante especial, no sentido em que não formulava queixa nenhuma e não sofria de qualquer achaque. Pelo contrário, resplandecia de saúde e a galabié intacta até parecia limpa. O olhar penetrante traía nele o mendigo profissional, apto a avaliar o cliente com uma simples olhadela. Gohar admirava-o por nem sequer ter pensado salvar as aparências. Na confusão geral, ninguém parecia atribuir importância ao seu estado de mendigo são e florescente. No meio de tanta coisa realmente absurda, o facto de mendigar parecia um trabalho como outro qualquer, de resto o único trabalho razoável. 
Ficava sempre no mesmo sítio, com a dignidade dum funcionário sentado à secretária. As pessoas atiravam-lhe distraidamente um óbolo, ao passar. Por vezes chegava a interpelar o doador, quando via que este lhe dera uma moeda falsa. Iniciava-se então interminável lengalenga, onde as ofensas tinham o peso da eternidade. Falava em chamar a polícia e o caso acabava sempre a seu favor. Gohar parou para o saudar.
- Viva! - disse o mendigo. - Já te tinha visto ao longe; estava à tua espera. 
- Hás-de perdoar-me - disse Gohar. - Não tenho dinheiro; fica para a próxima.
- Quem te disse que eu quero dinheiro? 
- Por que não? Até parece que me desdenhas. 
- Longe de mim tal pensamento - protestou o mendigo. - Só de ver-te fico encantado; muito aprecio conversar contigo. Vales mais pela tua presença do que todos os tesouros da terra juntos. 
- Lisonjeias-me - disse Gohar. - Correm-te bem os negócios?
- Deus é grande! - respondeu o mendigo. - Mas que interessam os negócios. Ele há na vida tantas alegrias. Não estarás tu a par do caso das eleições?
- Não, nunca leio os jornais. 
- Esse não vinha nos jornais. Contaram-mo.
- Diz lá então.
- Ora ouve! O caso passou-se há pouco tempo, numa aldeola do Baixo Egipto, durante as eleições para a junta de freguesia. Quando os funcionários do Governo abriram as urnas, notaram que na maioria dos boletins de voto estava escrito o nome Bargute. Ora os ditos funcionários do Governo não conheciam tal nome, que não figurava na lista de nenhum partido. Inquietos, logo se puseram à cata de informações; e acabaram por saber, pasmados de todo, que Bargute era o nome dum burro por quem toda a gente da aldeia nutria muita estima, por via da sabedoria do animal. Quase todos os moradores tinham votado nele. Que me dizes tu a esta história? 
Gohar respirou com júbilo; sentia-se extasiado. «São ignorantes e iletrados», disse para consigo, «e no entanto acabam de fazer a coisa mais inteligente conhecida no mundo desde que há eleições.» O comportamento destes camponeses perdidos no cu de Judas constituía o reconfortante testemunho sem o qual a vida se tornaria impossível. Gohar sentia-se derretido de admiração. A natureza da sua alegria era tão penetrante que ficou por momentos deslumbrado a olhar para o mendigo. Um milhafre veio poisar-se na calçada, perto deles, esquadrinhando o chão à cata de comida, e, nada topando, voltou a levantar voo. 
- Admirável! - exclamou Gohar. - E como acaba a história? 
- É claro, não foi eleito. Estás tu a ver, um burro de quatro patas! O que eles queriam, lá os do Governo, era um burro só de duas patas.
- Por uma história tão maravilhosa, algo mereces, com toda a franqueza. Alegraste-me o coração. Que posso fazer por ti?
- Basta-me a tua amizade, disse o mendigo. - Já sabia que haverias de apreciar.
- Enches-me de honrarias - disse Gohar . - Até um dia destes, assim espero.


Albert Cossery - Mendigos e Altivos