sábado, 31 de agosto de 2013

# 97



Chaktour ia voltar ao trabalho quando avistou o rapaz. Este mantinha-se à entrada da oficina, com o molho de trevo que tinha comprado no mercado debaixo do braço. Olhava para o pai com um ar de reprovação nos olhos tristes, como que a recordar-lhe qualquer coisa de grave de que o homem já não se lembrava.
- Que me trazes aí, pequeno?
- É para o carneiro, pai.
- Qual carneiro?
Como é que não compreendia? O garoto estava quase a chorar, mas conseguiu conter-se e explicou tudo àquele pai embrutecido pela miséria, escravo de uma fatalidade rigorosa e cruel.
- O carneiro da festa, pai. Eu cá arranjei trevo. Agora só te resta comprar o carneiro.
Apesar de sujo, o rapaz era belo. Estava nu debaixo da túnica cor de terra. Trazia a tristeza em todo o corpo. 
Chaktour olhou o filho com espanto e piedade. Não disse nada. No seu espírito continuamente atormentado, já não havia lugar para uma nova dor. Sentia-se simplesmente esmagado pelo gesto do filho. Compreendia agora que nesta criança - da sua carne e do seu sangue - se estava a formar uma miséria consciente e real de que ainda não se tinha apercebido e que para sempre ficaria ligada à sua. O menino crescerá e a sua miséria irá crescer com ele até ao dia em que fraco por sua vez - pode um homem suportar sozinho a sua miséria? - criará um filho que partilhará o peso dela com ele. A única consolação do pobre é não deixar ao morrer um filho pródigo. A ignomínia que lega à descendência é inesgotável.
- A festa não é para nós, meu filho - disse ele. - Nós somos pobres.
O garoto chorou, chorou amargamente.
- Não me interessa; quero um carneiro.
- Somos pobres. - repetiu Chaktour.
- Somos pobres porquê? - perguntou a criança.
O homem reflectiu antes de responder. Depois de tantos anos de indigência tenaz, ele próprio não se lembrava por que eram pobres. Era uma coisa que vinha de muito longe, de tão longe que Chaktour já não se lembrava como tinha começado. Dizia a si próprio que a sua miséria com certeza nunca tivera começo. Era uma miséria que se prolongava para além dos homens. Apanhara-o desde nascença e ele logo lhe pertencera, sem a menor resistência, visto que lhe estava destinada muito antes de ter nascido, ainda na barriga da mãe.
A criança estava sempre à espera que lhe explicassem por que eram pobres. Deixara de chorar, mas ainda havia muitas lágrimas dentro de si, todas as lágrimas das crianças miseráveis cujos sonhos são traídos pela vida.
- Escuta, pequeno, vai-te sentar num canto e deixa-me trabalhar. Se somos pobres é porque Deus nos esqueceu, meu filho.
- Deus! - exclamou a criança. - E quando se lembrará ele de nós, meu pai?
- Quando Deus se esquece de alguém, é para sempre.
- Guardo à mesma o trevo - disse o garoto. Pegou no molho de trevo e pousou-o num canto da oficina, sentando-se em cima dele. Depois recomeçou a chorar, por ser pequeno e ser aquela a maneira de se revoltar contra a injustiça do mundo. Bruscamente, o rapaz percebia que estava sozinho na vida e tocava as coisas desconhecidas da aflição humana, da lastimável aflição humana.
O homem, esse, recomeçou a trabalhar. A visão do pequeno rosto devastado pelas lágrimas fazia-lhe mal. Sofria de um modo novo e terrível. Mas que importava o seu sofrimento e o de todos os homens do universo. O importante era que a criança deixasse de sofrer. Cada vez mais se dava conta desta verdade essencial. O menino! Quem se ocuparia de salvar o menino?
 


Albert Cossery - O Barbeiro Matou a Mulher - Os Homens Esquecidos de Deus

# 96



Como todos os possuidores de bibliotecas, Aureliano sentia-se culpado de não a conhecer até ao fim;


Jorge Luís Borges - Os Teólogos - O Aleph


sexta-feira, 30 de agosto de 2013

# 95



(...) como quem emerge da onda em que mergulhou, reapareceu de novo à superfície da vida, trazendo consigo um sortido completo de bonitos sonhos, os quais, mal foram tocados pela luz do despertar, tornaram-se tristes e baços, perderam a sua credibilidade de sonhos para não ser mais que fragmentos de vida real, assustadores, cheios de ansiedade e de tormentos.


Albert Cossery - O Carteiro Vinga-se - Os Homens Esquecidos de Deus

# 94



A morte (ou a sua alusão) torna os homens preciosos e patéticos. Estes comovem pela sua condição de fantasmas; cada acto que executam pode ser o último; não há rosto que não esteja por apagar-se como o rosto de um sonho. Tudo, entre os mortais, tem o valor do irrecuperável e do fruto do acaso. Entre os Imortais, em contrapartida, cada acto (e cada pensamento) é o eco de outros que no passado o antecederam, sem princípio visível, ou o fiel presságio de outros que no futuro o repetirão até à vertigem. Não há coisa que não esteja como que perdida entre infatigáveis espelhos. Nada pode acontecer uma só vez, nada é preciosamente precário. O elegíaco, o grave, o cerimonioso, não vigoram para os Imortais.


Jorge Luís Borges - O Imortal - O Aleph

# 93



(...) num prazo infinito acontecem a todos os homens todas as coisas. Pelas suas passadas ou futuras virtudes, todos os homens são credores de toda a bondade, mas também de toda a traição, pelas suas infâmias do passado ou do porvir. (...) Encarados assim, todos os nossos actos são justos, mas são também indiferentes.


Jorge Luís Borges - O Imortal - O Aleph

# 92



Ser imortal é de mau gosto; à excepção do Homem, todas as criaturas o são, pois ignoram a morte; o divino, o terrível, o incompreensível, é saber-se imortal.


Jorge Luís Borges - O imortal - O Aleph

# 91



E que sabemos nós acerca de nós mesmos, interroga-se. Cada dia menos, porque ainda por cima Celia estuda, de há um tempo a esta parte, a possibilidade de se tornar budista (...) A ele, não lhe escapa que esse budismo no horizonte pode acabar por se tornar um grande problema, assim como o foi aquela escalada de álcool, que levou Celia a ponderar seriamente deixá-lo. (...)
Ficaram imóveis os dois agora, como se a ambos preocupassem as mesmas questões e isso os tivesse paralisado. A vida, o álcool, o budismo e, sobretudo, o desconhecimento que têm um do outro. 
Ficaram os dois presos por um frio inesperado, como se de repente se tivessem dado conta de que, no fundo, são desconhecidos um para o outro, e também para eles próprios (...) 
Crê que combinou sempre indiscutivelmente bem essa relativa ignorância sobre Celia com a sua completa ignorância sobre si mesmo. Como comentou uma vez em La Vanguardia: "Não me conheço. O meu catálogo editorial parece ter ocultado para todo o sempre a pessoa que está por detrás dos livros que fui publicando. A minha biografia é o meu catálogo. Mas falta o homem que ali estava antes de me decidir a ser editor. Falto eu, definitivamente."
- Em que estás a pensar? - pergunta-lhe Celia.
Incomoda-o ter sido interrompido e reage de maneira estranha e diz-lhe que estava a pensar na mesa da sala de jantar e nas cadeiras da entrada, que são perfeitamente reais, e na cesta de fruta que pertenceu à sua avó, mas que, apesar disso, também está a pensar que qualquer louco poderia entrar pela porta a todo o momento e opinar que as coisas não são assim tão claras.
A seguir, fica consternado, pois dá-se conta de que complicou tudo desnecessariamente. A sua mulher, agora, está indignada.
- Quais cadeiras? - diz Celia. - Qual entrada? E que louco? De certeza que me escondes algo. Volto a perguntar-te. Em que estás a pensar? Será que voltaste a beber?
- Estou a pensar no meu catálogo - diz Riba, e baixa a cabeça. Desde que deixou de beber, são raras as discussões matrimoniais com Celia. Isso foi um grandessíssimo avanço nas suas relações. Antes, eram combates duros, e nunca quis excluir a ideia de que fora ele, com o seu maldito álcool, sempre o culpado. Quando as discussões eram mais graves, Celia costumava meter umas quantas coisas numa mala, que logo a seguir punha no patamar. Depois, se lhe dava o sono, ia para a cama, mas deixava a mala lá fora. Deste modo, os vizinhos ficavam sempre a saber quando eles tinham discutido: a mala era o reflexo do que se passara na noite anterior.


Enrique Vila-Matas - Dublinesca

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

# 90



Dizia Ferruccio que não se deve contar os sonhos, porque é como entregar a alma. Segui sempre o seu conselho, mas acho que contigo é diferente, vieste para ouvir uma vida, fizeste tantos quilómetros, deixaste tudo, mereces também os sonhos...


Antonio Tabucchi - Tristano Morre

# 89



Curiosamente, não me surpreendia nem me chocava que a Luísa me falasse com tanta confiança, como se eu fosse uma amiga. Talvez não pudesse falar de outra coisa e nos meses decorridos desde a morte de Deverne esgotara com a sua estupefacção e as suas aflições todos os seus próximos, ou tinha vergonha de insistir no mesmo assunto com eles e aproveitava para desabafar a novidade que eu supunha. Talvez lhe fosse indiferente quem eu era, bastava-lhe ter-me como interlocutor não gasto, com quem podia começar desde o princípio. É outro dos inconvenientes de ser vitimado por uma desgraça: em quem a sofre os efeitos duram muito mais do que dura a paciência dos que se mostram dispostos a ouvi-lo e a acompanhá-lo, a incondicionalidade nunca é muito longa e tinge-se de monotonia. E assim, mais tarde ou mais cedo, a pessoa triste fica só quando ainda não terminou o seu luto ou já não se lhe consente que fale mais daquilo que ainda é o seu único mundo, porque esse mundo de angústia é insuportável e afugenta. Verifica que para os outros qualquer desdita tem uma data de caducidade social, que ninguém está disponível para a contemplação do desgosto, que esse espectáculo só é tolerável durante uma breve temporada, enquanto nele existe ainda comoção e dilaceração e uma certa possibilidade de protagonismo para os que olham e assistem, que se sentem imprescindíveis, salvadores, úteis. Mas ao verificarem que nada muda e que a pessoa afectada não avança nem emerge, os outros sentem-se humilhados e supérfluos, tomam isso quase como uma ofensa e afastam-se: "Então eu não lhe basto? Como é que não sai do poço se me tem a mim a seu lado? Porque é que se empenha na sua dor se já passou algum tempo e eu lhe proporcionei distração e consolo? Se não pode levantar a cabeça, então que se afunde e desapareça." E então o afligido faz isso mesmo, retrai-se, ausenta-se, esconde-se.


Javier Marias - Os enamoramentos

terça-feira, 27 de agosto de 2013

# 88



(...) Claudio Magris é de opinião que essa viagem circular de um pletórico Ulisses que regressa a casa - a viagem tradicional, clássica, edipiana e conservadora de Joyce - foi substituída em meados do século XX pela viagem rectilínea: uma espécie de peregrinação, de viagem que avança sempre em frente, para um ponto impossível do infinito, como uma recta que avança a titubear no nada.
Agora, ele poderia ver-se como um viajante rectilíneo, mas não quer colocar-se muitos problemas e decide que a sua viagem pela vida é tradicional, clássica, edipiana e conservadora. Pois não está a voltar para casa de táxi? Não vai a casa dos pais sempre que regressa de uma viagem e, ainda por cima, os visita sem falta todas as quartas-feiras? Não anda a preparar uma viagem a Dublin e ao próprio centro de Ulysses para, dias depois, bonacheiramente, regressar a Barcelona a sua casa e a casa dos seus pais e contar-lhes a viagem? É quase inegável que leva uma vida na mais pura ortodoxia da viagem circular.


Enrique Vila- Matas - Dublinesca

# 87



(...) por vezes tem-se a sorte de sonhar com aquilo que se quer sonhar, mas é raro, um privilégio raro (...)


Antonio Tabucchi - Tristano Morre

# 86



(...) poderia ver-se a si mesma, ou julgava ver-se - como uma pequena figura solitária arrastando a carga desses antepassados, as suas fraquezas e desvarios (que poderia inventar, quando os desconhecesse) no sangue; era uma vítima de forças obscuras - toda a gente o é, não se pode escapar a isso! - mal compreendida e trágica, contudo pelo menos, com vontade própria! Mas para que servia a vontade quando não se possuía fé? (...) Era isso também que ela procurava e sempre procurara em todos os tempos e em todas as coisas, uma fé qualquer - como se uma pessoa a pudesse encontrar como quem descobre um chapéu novo, ou uma casa para alugar! - Sim, era o que ela estava agora a pontos de encontrar e perder - era melhor ter fé numa causa do que não possuir fé absolutamente nenhuma. (...) Mas porque é que seria que ela, ricamente dotada de uma enorme capacidade de viver, não conseguira encontrar nunca uma fé suficiente na vida? E ainda se aquilo fosse tudo! Fé no amor desprovido de egoísmo - nas estrelas! Talvez isso bastasse. E, no entanto, era inteiramente verdade que ela não tinha nunca desistido, ou deixado de ter esperança, ou de tentar, numa ânsia, encontrar um significado, um padrão, uma resposta...


Malcolm Lowry - Debaixo do Vulcão

# 85



A Frau entende os domingos, é daquelas pessoas que na vida entendem os domingos, tenta clarear a voz, tarefa impossível, parece um fole, quando fala assobia, é o enfisema, o médico foi categórico mas ela fez que não percebeu, a Frau é extraordinária, se lhe dizes alguma coisa que não lhe agrada finge que é uma alemã acabada de chegar, fuma o seu charuto às escondidas, refugiada no fundo da vinha (...)


Antonio Tabucchi - Tristano Morre

# 84


(...) os sonhos são uns milagres miseráveis...


Antonio Tabucchi - Tristano Morre

# 83



(...) tudo na vida acontece ao acaso, por vezes chego a pensar que até o livre arbítrio é fruto do acaso...


Antonio Tabucchi - Tristano Morre

# 82



(... ) as fotografias são como nós. nós engelhamos e elas amarelecem, deterioram-se, têm uma epiderme como a nossa, sabes, a pele conserva aquele mar interior de que somos feitos, porque somos feitos de água, protege o corpo do calor exterior enquanto mantém o calor interior, eliminando-o quando se torna excessivo, com o tempo...e depois de o mar se ter evaporado fica um invólucro todo engelhado, inútil...


Antonio Tabucchi - Tristano Morre

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

# 81



(...) Hugh vira um homem deitado, a dormir ao que parecia, por baixo da sebe do lado direito da estrada. Por pouco que não o iam atropelando. (...)
Jazia de costas, serenamente, com os braços estendidos na direcção da cruz de pedra da margem da estrada, a cuja sombra projectada, aí a meio metro de distância, poderia ter arranjado uma cama de relva. Perto, um cavalo pastava mansamente as folhas da sebe. (...)
Mas o homem, de facto, não dormia serenamente. O peito dele arfava como o de um nadador esgotado; o ventre contraía-se-lhe e dilatava-se-lhe rapidamente; um dos punhos, ora se abria, ora se fechava no pó da estrada...
(...)
Como ninguém se mexesse, Hugh começou a impacientar-se. (...) Olhou para o Cônsul numa expectativa; ele já estava naquele país havia tempo suficiente para saber o que convinha fazer. Além disso, o irmão era, entre eles todos, naturalmente o que melhor podia representar a autoridade. Contudo o Cônsul parecia perdido em reflexões. De repente, Hugh avançou impulsivamente e curvou-se para o índio. Um dos passageiros puxou-lhe pela manga:
- Já deitou fora o cigarro?
- Deita-o fora. - disse o Cônsul. - Por causa dos fogos florestais.
- , é proibido.
Hugh pisou o cigarro, e ia para se curvar mais uma vez para o homem quando o passageiro lhe tornou a puxar pela manga:
- No, no - disse, apoiando o dedo no nariz - proibiram isso también.
- Não lhe podes tocar, há que obedecer à lei - acudiu vivamente o Cônsul, que, naquele momento, mostrava ar de quem desejasse encontrar-se o mais longe possível daquela cena, aproveitando até para isso, se necessário fosse, o cavalo do índio. - Para protecção dele. Realmente é uma lei sensata. De outra maneira, podias ser acusado de cumplicidade.
A respiração do índio assemelhava-se ao mar batendo numa praia de seixos. Um pássaro solitário voava lá no alto.
- Mas o homem pode estar a mor... - balbuciou Hugh para Geoffrey.
- Só Deus sabe quanto isso me custa - replicou o Cônsul embora fosse verdade que ele ia para agir quando o pelado se antecipou. Pousou um joelho em terra e, veloz como o relâmpago, afastou o chapéu do índio.
Todos olharam com a maior atenção. Uma grave ferida, onde o sangue já quase coagulara, manchava-lhe um dos lados da cabeça. Viram-lhe o rosto  de lado. Tinha bigode e mostrava-se congestionado. Antes de se afastarem, Hugh viu uma porção de dinheiro: quatro ou cinco pesos de prata e uma mancheia de centavos, que havia sido muito bem arrumada debaixo da gola larga da blusa do homem, a qual escondia parcialmente o tal dinheiro. O pelado tornou a pôr o chapéu no seu lugar e, endireitando-se, fez com as mãos agora manchadas de sangue, um gesto significativo de impotência.
Há quanto tempo estaria estendido na estrada?
Hugh seguiu com o olhar o pelado que voltava para o autocarro e, depois, fitou mais uma vez o índio, cuja vida parecia ir fugindo enquanto os circundantes conversavam. (...)
Teria sido roubo, tentativa de assassinato ou ambas as coisas? O índio voltava provavelmente do mercado, onde teria vendido os seus produtos, com muito mais do que quatro ou cinco pesos escondidos no chapéu, com muito dinero; por isso, para não despertar suspeitas de roubo, o atacante teria deixado umas moedas. E talvez não fosse roubo afinal; talvez tivesse caído do cavalo? Era possível. Era impossível.
Sí, hombre, mas a polícia não teria sido chamada? Mas com certeza que já alguém teria ido buscar socorros. Chingar. Um deles devia ir buscar socorros, ir à polícia. Uma ambulância - a Cruz Roja. Onde seria o telefone mais próximo?
Mas era absurdo supor que a polícia não viesse já a caminho. Como é que os chingados podiam vir a caminho se metade deles estava em greve? Não, só uma quarta parte é que se encontrava em greve. Vinham a caminho, pois então? Um táxi? No, hombre, também esses estavam em greve. Mas haveria algum fundamento - interveio alguém - para o boato que se espalhara a respeito de a ambulância ter sido suspensa? Não era a Cruz Vermelha, mas a Cruz Verde. E, além disso, elas só trabalhavam depois de serem informadas. Falem com o Dr. Figueroa. Um hombre noble. Mas não havia telefone. Dantes, havia um telefone em Tomalín, mas estava avariado. Não, o Dr. Figueroa tinha um telefone novo e todo bonito. Pedro, o filho de Pepe, cuja sogra era a Josefina, que também conhecia - diziam - Vicente González, fora o próprio que o instalara, trazendo o fio pelas ruas. (...) quem quer que tinha colocado o índio à beira da estrada - embora, nesse caso, fosse difícil compreender porque o não havia de ter levado para a relva e para junto da cruz - quem lhe metera o dinheiro na gola, para maior segurança - mas talvez fosse o próprio dinheiro que para lá tivesse escorregado - quem quer que providencialmente havia atado o cavalo à árvore da sebe onde ele ia naquele momento pastando - contudo seria o cavalo realmente do índio? - quem quer que fosse e onde se encontrasse, uma vez que agira com tanta sabedoria e compaixão - deveria estar agora a procurar socorros.
Não havia limite para a ingenuidade daquela gente, embora o mais poderoso e último obstáculo quanto a fazerem alguma coisa pelo índio fosse o descobrirem que aquilo não lhes dizia respeito. (...) Não é nada comigo, mas convosco - diziam todos, abanando as cabeças e, no entanto, não, nem sequer é convosco, mas com outras pessoas quaisquer.


Malcolm Lowry - Debaixo do Vulcão

# 80



- E agora quais são os teus planos?
Fica calado, não esperava a pergunta. Não tem nenhum plano em perspectiva, nem um maldito convite para um congresso de editores; nenhuma apresentação de um livro onde cair morto; nenhuma outra teoria literária para escrever num quarto de Lyon; nada, mas é que nada de nada.
- Estou a ver que não tens planos - diz a mãe.
Ferido no seu amor próprio, permite que Dublin acorra em seu auxílio. (...)
- Ando a preparar uma viagem a Dublin, diz Riba, para arrumar o assunto. (...)
A sua mãe pergunta, com bela candura, o que vai fazer a Dublin. E ele responde a primeira coisa que lhe ocorre: que vai a 16 de Junho, para dar uma conferência. (...)
- Sobre o que é a conferência? - pergunta o pai.
Breve titubear.
- Sobre o romance Ulysses de James Joyce e da passagem da constelação Gutenberg para a era digital. - responde.
Foi a primeira coisa que lhe ocorreu. Depois, faz uma pausa e, a seguir, como se lhe tivesse sido ditado por uma voz interior, acrescenta:
- Na realidade, querem que fale do fim da era da imprensa.
- Vão fechar as tipografias? - pergunta a mãe.
Os seus pais não fazem - que ele saiba - nem a mais remota ideia de quem seja Joyce e ainda menos do género de romance que está por detrás do título de Ulysses, e os quais, além disso, são apanhados desprevenidos pelo tema do fim da era da imprensa, olham-no como se acabassem de confirmar que, embora sendo muito benéfico para a sua saúde, ultimamente anda muito esquisito por causa do estado de sobriedade permanente em que vive submerso desde que há dois anos deixou tão radicalmente o álcool. Intui que os seus pais estão a pensar nisso e não receia pouco, além do mais, que ao pensá-lo tenham a sua quota parte de razão, pois a sobriedade constante afecta-o, para quê enganar-se. Está demasiado ligado ao pensamento e às vezes desliga fatalmente uns segundos e dá respostas que deveria ter pensado melhor, como a que acaba agora mesmo de lhes dar sobre Ulysses e a galáxia Gutenberg.
Deveria ter-lhes respondido qualquer coisa diferente. Mas, como dizia Céline, "uma vez metido, que seja até ao pescoço". Uma vez que já anunciou que vai a Dublin, vai continuar a meter-se no enredo, até ao pescoço, até onde for necessário. Irá a Dublin.


Enrique Vila-Matas - Dublinesca

domingo, 25 de agosto de 2013

# 79



- O que sei é isto, nada mais - disse Franny. - Quando se é um poeta, fazem-se coisas belas.


J. D. Salinger - Franny e Zooey

sábado, 24 de agosto de 2013

# 78



De repente, invade-o uma sensação de clausura e, ao mesmo tempo, de ser mais do que capaz de atravessar as paredes. Algures, à margem de um dos seus pensamentos, descobre uma escuridão que lhe chega aos ossos. Não o surpreende demasiado, está habituado a que isto aconteça em casa dos seus pais.


Enrique Vila-Matas - Dublinesca

# 77



O que é entusiasmo? - perguntou a criança.
Viria a recordar-se sempre dos termos exactos dessa pergunta, porque - acanhado como era nessa idade - foi a primeira que fez na vida.


Enrique Vila-Matas - Dublinesca

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

# 76



- Pois, é essa a ideia que se costuma ter. De que aquilo que acabou é menos grave que o que está a acontecer, e de que o ter acabado nos deve aliviar. De que aquilo que aconteceu deve doer-nos menos que o que está a acontecer, ou de que as coisas são mais suportáveis quando já terminaram, por muito horríveis que tenham sido. Mas isso é o mesmo que acreditar que é menos grave alguém morto que alguém que está a morrer, o que não faz muito sentido, não achas? O irremediável e o mais doloroso é que tenha morrido; e o facto de o transe ter acabado não significa que a pessoa não tenha passado por ele. Como é que não havemos de ter presente esse transe, se foi o último que connosco partilhou, connosco que continuamos vivos. O que se seguiu a esse seu momento está fora do nosso alcance, mas quando teve lugar, pelo contrário, ainda estávamos todos aqui, na mesma dimensão, ele e nós, respirando o mesmo ar. Ainda coincidimos no tempo, ou no mundo. Não sei, não sei explicar-me. - Fez uma pausa e acendeu um cigarro (...) - Além disso, nada passa de todo, lá estão os sonhos, neles os mortos aparecem vivos e os vivos às vezes morrem-nos. Eu sonho muitas vezes com aquele momento, e então sim, estou presente, estou lá, sim, sei, estou no carro com ele e descemos os dois, e eu aviso-o porque sei o que vai acontecer-lhe, e nem assim pode escapar. Bom, bem sabes como são estas coisas, os sonhos são ao mesmo tempo confusos e exactos. Sacudo-os e basta acordar, em poucos minutos desvanecem-se, esquecem-me os pormenores, mas depois dou-me conta de que o facto permanece, de que é verdade, de que se passou, de que o Miguel está morto e que o mataram de um modo parecido com aquele que sonhei, embora a cena do sonho se me tenha diluído instantaneamente.


Javier Marias - Os enamoramentos

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

# 75



Quantos lobos sentimos atrás de nós, enquanto os nossos verdadeiros inimigos andam disfarçados com peles de carneiro?


Malcolm Lowry - Debaixo do Vulcão

# 74



Estou tão farta de pedantes e convencidos demolidores que sou capaz de me pôr aos gritos.


J. D. Salinger - Franny e Zooey

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

# 73



Vinte e nove nuvens. Aos vinte e nove, já um homem podia dizer que andava nos trinta. E ele tinha vinte e nove. E agora, finalmente, embora esse sentimento se tivesse avolumado dentro dele durante toda a manhã, Hugh sabia o que aquilo era: o intolerável choque que poderia ter vindo aos vinte e dois, mas que nessa altura não se verificara; que devia ter chegado pelo menos aos vinte e cinco, mas ainda nessa altura se lhe recusara, esse conhecimento até aí apenas associado com gente vacilando à beira do túmulo (...), que consiste em saber-se o seguinte: uma pessoa não pode ser eternamente jovem; na verdade, um indivíduo perde a juventude num abrir e fechar de olhos. É que, em menos de quatro anos, que passam tão velozmente como o cigarro que hoje se fumou e que parece ser o que ontem se consumiu, uma pessoa chega aos trinta e três; daí a sete, aos quarenta; em quarenta e sete, aos oitenta. Sessenta e sete anos dão-nos a confortável sensação de muito tempo, mas a verdade é que nessa altura, desejar-se-á viver até aos cem. Já não sou um menino-prodígio. Já não tenho desculpa para continuar a proceder como se fosse um irresponsável. No fim de contas, não sou nenhum estoira-vergas. Não sou criança. Por outro lado, sou um impulsivo. Não sou? És um mentiroso, disseram as árvores que se baloiçavam no jardim.


Malcolm Lowry - Debaixo do Vulcão

# 72



- Tenho outro inimigo atrás de mim, que o doutor não vê - dissera-lhe o Cônsul, erguendo o rosto para os vulcões e sentindo a sua desolação escapar-se para aquelas altitudes, onde, até nessa altura, a meio da manhã, a neve deslumbrante devia chicotear o rosto, e a terra a seus pés, não passaria de lava morta - um resíduo petrificado de plasma extinto, no qual até as árvores mais rudes e solitárias nunca viriam a pegar de raiz. - É um girassol. Sei que me odeia e que me anda sempre a espiar.
- Exactamente - respondera o Dr. Vigil - mas talvez o odiasse um bocadinho menos se você deixasse de beber tequila.

(...)

- (...) Sabe, compañero, às vezes, tenho a impressão de que este mundo está realmente a afundar-se, como a Atlântida, sob os meus pés. A afundar-se, a afundar-se, até chegar ao abismo onde pairam os horríveis polvos gigantes. - Merope de Theompus...E as montanhas ignívomas.
E o médico acenava sombriamente com a cabeça, enquanto ia dizendo:
- Si, isso é da tequila. Hombre, un poco de cerveza, un poco de vino, mas não torne a tocar na tequila! Nem no mescal...

Malcolm Lowry - Debaixo do Vulcão

# 71



(...) a melhor coisa do mundo é viajar e perder teorias, perdê-las todas.


Enrique Vila-Matas - Dublinesca

# 70



E ainda nada nem ninguém o conseguiu convencer que envelhecer tem a sua graça.


Enrique Vila-Matas - Dublinesca

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

# 69




A vida não pode perder tempo. Nesse caso, porque é que perde tanto de tudo o mais?


Malcolm Lowry - Debaixo do Vulcão



domingo, 18 de agosto de 2013

# 68



"Interesso-me muito pelos loucos". Era uma maneira estranha de começar uma conversação com um tipo com quem se estava a beber. Contudo fora assim mesmo que o médico, no bar da Bela Vista, começara a conversa na noite anterior. Seria porque Vigil, dada a sua experiência, lhe tinha prognosticado a loucura próxima (...)  como alguém que, tendo observado o vento e o tempo toda a sua vida, se encontra apto a profetizar, mesmo com o céu límpido, a tempestade que não tarda, a escuridão que virá galopando, nem se sabe de onde, através dos campos do espírito?

Malcolm Lowry - Debaixo do Vulcão

sábado, 17 de agosto de 2013

# 67



(...) tenho perguntado frequentemente a mim mesmo se aquela coisa que nos conta a velha lenda do jardim do Éden não terá mais que se lhe diga do que a gente julga? E se Adão não tivesse sido realmente expulso de lá? Isto é, no sentido em que nós costumamos interpretar esse facto? (...) E se o castigo dele consistisse efectivamente - prosseguiu o Cônsul com ardor - em ter de continuar a viver ali sozinho, claro, - sofrendo, sem que ninguém desse por tal, absolutamente abandonado por Deus...Ou talvez - acrescentou, com ar mais jovial - talvez Adão tivesse sido o primeiro proprietário e Deus o primeiro distribuidor de propriedade, uma espécie de Cardénas que acabasse - tu-tu-ru-tu-tu - por lhe expropriar o terreno. Que lhe parece? Sim, prosseguiu o Cônsul, rindo por entre dentes (...) não lhe parece, Quincey, que o pecado original, consistiu, no fim de contas, em ser-se dono de uma propriedade?


Malcolm Lowry - Debaixo do Vulcão

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

# 66



(...) o que ele queria era - reconhecia-o agora claramente - era falar com alguém - eis do que ele necessitava - mas precisava, afinal, ainda de mais uma coisa - o que ele queria implicava qualquer coisa semelhante ao agarrar naquele momento uma brilhante oportunidade, ou, para ser mais preciso, uma oportunidade de ser brilhante, uma oportunidade justificada por aquela aparição do Sr. Quincey, por entre as roseiras bravas, que, agora, tinha à sua mão direita e que teria de evitar se quisesse vir à fala com o vizinho. Contudo, aquela oportunidade de ser brilhante era, por sua vez, mais parecida com qualquer outra coisa; com a oportunidade de se sentir admirado e mesmo - podia agradecer à tequila o conferir-lhe tamanha franqueza para consigo mesmo, por muito breve que fosse a duração de semelhante atitude - de se sentir estimado. Estimado ao certo porquê? Ora aí estava outro problema: desde que o pusesse a si mesmo, poderia solucioná-lo da seguinte forma: "Estimado pelo meu descuido e aparência de irresponsabilidade, ou mesmo pelo facto de, por baixo desta aparência, arder óbvia e intensamente o fogo do génio, o qual não é precisamente o meu génio, mas, por muito extraordinário que isso pareça, o do meu velho e bom amigo Abraham Taskerson, o grande poeta que, em tempos, com tamanho ardor falava das minha possibilidades literárias de jovem."


Malcolm Lowry - Debaixo do Vulcão

# 65



(...) a sua sede continuava por saciar. Talvez porque ele estivesse a beber, não água, mas claridade e promessas de claridade (...) Talvez porque não estivesse a beber água, mas uma certeza de luminosidade (...)

Malcolm Lowry - Debaixo do Vulcão

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

# 64



O espelho interior da montra devolveu-lhe a imagem de uma criatura vinda do mar, impregnada de emanações salinas, tostada pelo Sol, batida pelos ventos oceânicos e salpicada de espuma, que parecia retribuír-lhe o olhar (...) Na mesma montra, a cada um dos lados desse olhar abstracto do seu rosto reflectido no espelho, encontravam-se alinhadas as mesmas participações de casamento que ela sempre ali vira, os mesmos cartões impressos e ilustrados, com noivas extravagantes e profusamente toucadas de flores, mas, desta vez, havia lá qualquer coisa que ela ainda não tinha visto e que o Cônsul lhe apontou murmurando - "estranho!" - e aproximou-se para ver melhor. Era uma ampliação fotográfica, que pretendia mostrar a desintegração de um depósito glaciar da Sierra Madre, de uma grande rocha despedaçada pelo fogo da floresta. Esse estranho quadro é estranhamente doloroso - ao qual a natureza dos outros artigos expostos acrescentava uma nota de pungente ironia - e encontrava-se por detrás, acima do volante das máquinas de impressão e chamava-se La Despedida.
(...)
La Despedida - pensou. A Despedida! Depois de a humidade e os detritos terem realizado o seu trabalho, ambas as metades dessa rocha despedaçada se desagregariam na terra. Era inevitável - assim dizia o quadro. E sê-lo-ia, na realidade? Não haveria maneira de salvar o pobre do rochedo, cuja imutabilidade ninguém, pouco antes, se lembraria de pôr em dúvida? Ah, quem é que teria pensado nesse rochedo, que não fosse para o considerar uma simples rocha bem integrada? Mas, admitindo que ela se tivesse partido, não haveria maneira de, antes que se verificasse a desintegração total, salvar ao menos as metades separadas? Não havia maneira. A violência do fogo, que partira a rocha, favorecera igualmente a destruição das duas rochas separadas, anulando a força que lhes poderia ter mantido a unidade. Oh, mas por que motivo, por que chaprichosa taumaturgia geológica, se não poderiam caldear novamente os pedaços arrancados um ao outro? Ansiava ardentemente por curar a rocha partida. Ela era uma dessas rochas e desejava, com o maior fervor salvar a outra, para que ambas se pudessem salvar.


Malcolm Lowry - Debaixo do Vulcão

# 63



O amor é a única coisa que imprime sentido aos nossos pobres caminhos neste mundo;


Malcolm Lowry - Debaixo do Vulcão

# 62



Em cada homem habita um poeta frustrado.


Malcolm Lowry - Debaixo do Vulcão

# 61



Não existe outra paz, além daquela que paga portagem completa para o inferno...


Malcolm Lowry - Debaixo do Vulcão

# 60



Que era a vida senão uma luta e uma viagem transitória num país estranho?


Malcolm Lowry - Debaixo do Vulcão

sábado, 10 de agosto de 2013

# 59



Franny e Lane estavam a beber martinis. Quando lhes serviram as bebidas, dez ou quinze minutos antes, Lane tinha provado a dele e depois recostara-se na cadeira olhando de fugida à volta com uma sensação de quase palpável bem-estar por se encontrar (tinha a certeza de que ninguém poderia pôr isso em causa) no lugar adequado com uma rapariga de aspecto impecavelmente adequado - uma rapariga que não só era extraordinariamente bonita, como, mais ainda, não era demasiado categoricamente camisola de caxemira e saia de flanela. Franny notara esta pequena exposição momentânea e atribuíra-lhe o valor que tinha, nem mais nem menos. Mas por força de um qualquer acordo antigo e permanente com a sua psique, resolveu sentir-se culpada por tê-la visto, apreendido, e condenou-se a ouvir a conversa subsequente de Lane com uma cara de particular interesse.
Lane estava nesse momento a falar como alguém que tinha estado a monopolizar a conversa durante um quarto de hora ou mais e acredita ter encontrado uma cadência em que a sua voz não pode errar.
- O que eu quero dizer, para falar francamente - dizia - é que se poderia afirmar que o que lhe falta é testicularidade. Percebes o que estou a dizer?
Estava retoricamente inclinado para a frente, para Franny, o seu interessado público, com os antebraços a servir de apoio e o martini pelo meio.
- Falta-lhe o quê? - perguntou Franny.
Tivera de aclarar a garganta antes de falar, tanto fora o tempo que passara sem dizer nada.
Lane hesitou.
- Masculinidade. - disse.
- Já te tinha ouvido.
- Bom, era esse o motivo da coisa, por assim dizer...O que eu estava a tentar expressar de uma maneira bastante subtil - disse Lane, seguindo muito de perto o fio da sua própria conversa. - Quer dizer, meu Deus. Pensei sinceramente que ia ser como um balão de chumbo, e quando o recebi com esse maldito A com letras garrafais juro-te que quase caí de costas.
Franny voltou a aclarar a garganta. Ao que parecia, já tinha cumprido a condenação que a si própria impusera de ser uma ouvinte perfeita.
- Porquê? - perguntou.
Lane pareceu levemente interrompido.
- Porquê o quê?
- Por que pensaste que seria como um balão de chumbo?
- Já te disse. Acabei de te explicar. Este tipo, Brughman, é um grande especialista em Flaubert. Ou pelo menos era o que eu julgava.
- Ah - disse Franny. Sorriu. Bebeu um gole do martini. - Está óptimo - disse, olhando para o copo. - Estou muito contente por não ser vinte para a uma. Detesto quando são só gim.
Lane concordou com a cabeça.
- Seja como for, acho que tenho esse amaldiçoado trabalho no meu quarto. Se tivermos oportunidade durante o fim de semana, hei-de ler-to.
- Esplêndido. Vou adorar.
Lane concordou outra vez com a cabeça.
- Não é que diga nada de excepcionalmente sensacional, nem nada disso. - Mudou de posição na cadeira. - Mas, não sei, penso que a ênfase que coloquei no porquê da sua neurótica atracção pelo mot juste não estava nada mal. Isto é, à luz do que sabemos hoje em dia. Não só a psicanálise e essas tretas todas, mas até certo ponto também isso, é claro. Não sou nenhum freudiano, nem coisa que o valha, mas há certas certas coisas que não podemos classificar de freudianas com F maiúsculo e depois pô-las de lado. Quero dizer que de certo modo era perfeitamente justificado sublinhar que nenhum dos rapazes realmente bons, como Tolstoi, Dostoiévski e o próprio Shakespeare, por amor de Deus, eram assim tão espremedores de palavras. Escreviam, é tudo. Estás a perceber?
Lane olhou para Franny com uma certa expectativa. Parecia-lhe que ela o ouvira com uma atenção muito especial.
- Vais comer a azeitona ou não?
Lane passou os olhos fugazmente pelo seu copo de martini, depois voltou a olhar para Franny.
- Não - disse friamente. - Queres?
- Se tu não a comeres - disse Franny.
Percebeu pela expressão de Lane que tinha feito a pergunta errada.

(...)


Franny e Zooey - J. D. Salinger

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

# 58



(...) é muito arriscado metermo-nos na mente de alguém imaginariamente, depois às vezes custa a sair, suponho que é por isso que tão pouca gente o faz e quase todos o evitam e preferem dizer de si para si: "Não sou eu que estou ali, não me cabe a mim viver o que se passa com ele, e por que raio é que hei-de juntar-me aos seus padecimentos. Esta bebida amarga não é minha, cada qual que beba as suas."


Javier Marias - Os enamoramentos

# 57



De onde me virá a impressão que a casa, apesar de igual, quase tudo lhe falta? As divisões são as mesmas com os mesmos móveis e os mesmos quadros e no entanto não era assim, não era isto, fotografias antigas em lugar da minha mãe, do meu pai, das empregadas da cozinha e da tosse do meu avô comandando o mundo (...)

António Lobo Antunes - O Arquipélago da Insónia