quarta-feira, 12 de junho de 2013

# 13


O desígnio que o guiava não era impossível, se bem que sobrenatural. Queria sonhar um homem: queria sonhá-lo com uma integridade minuciosa e impô-lo à realidade. Este projecto mágico esgotara o espaço inteiro da sua alma; se alguém lhe perguntasse o seu próprio nome ou qualquer pormenor da sua vida anterior, não seria capaz de responder.
(...)
Ao princípio, os sonhos eram caóticos; pouco depois, foram de natureza dialéctica. O forasteiro sonhava-se no meio de um anfiteatro circular, que era de certo modo o templo incendiado: magotes de alunos taciturnos fatigavam os degraus; as caras dos das últimas filas pendiam há muitos séculos de distância e a uma altura estelar, mas viam-se com uma precisão absoluta. O homem dava-lhes lições de anatomia, de cosmografia, de magia: os rostos escutavam com ansiedade e tentavam responder com entendimento, como se adivinhassem a importância daquele exame, que deveria redimir um deles da vã aparência e o interpolaria no mundo real. O homem, no sonho e acordado, considerava as respostas dos seus fantasmas, não se deixava enganar pelos impostores, adivinhava em certas perplexidades uma inteligência crescente. Procurava uma alma que merecesse participar do universo.
Ao cabo de nove ou dez noites compreendeu com certa amargura que nada podia esperar dos alunos que aceitavam passivamente a sua doutrina, mas sim dos que arriscavam, às vezes, uma contradição razoável. Os primeiros, embora dignos de amor e afeição, não podiam elevar-se a indivíduos; os últimos preexistiam um pouco mais. Uma tarde (agora também as tardes eram tributárias do sonho, agora só estava acordado umas horinhas ao amanhecer) despediu para sempre o vasto colégio ilusório e ficou apenas com um único aluno.
(...)
Um dia o homem emergiu do sono como de um deserto viscoso, fitou a vã luz da tarde que começou por confundir com a da aurora, e compreendeu que não tinha sonhado. Durante essa noite toda e todo o dia, abateu-se sobre ele a intolerável lucidez da insónia. Quis explorar a floresta, extenuar-se; só a custo conseguiu pela cicuta uns quantos lampejos de sono fraco, riscados fugazmente por visões de tipo rudimentar: inaproveitáveis. Quis voltar a reunir o colégio e mal articulou umas breves palavras de exortação, logo este se deformou e desfez. Na sua quase perpétua vigília, lágrimas de cólera queimavam-lhe os velhíssimos olhos.
Compreendeu que a tarefa de modelar a matéria incoerente e vertiginosa de que se compõem os sonhos é a mais árdua a que se pode entregar um homem (...).
(...)
Para retomar a tarefa, esperou que o disco da lua ficasse perfeito. Depois, à tarde purificou-se nas águas do rio, adorou os deuses planetários, pronunciou as sílabas lícitas de um nome poderoso e adormeceu. Quase imediatamente, sonhou com um coração a bater.
Sonhou-o activo, quente, secreto, do tamanho de um punho cerrado, de cor escarlate na penumbra de um corpo humano ainda sem cara nem sexo, com minucioso amor sonhou-o durante catorze lúcidas noites. Noite a noite, percebia-o com uma evidência cada vez maior. Não o tocava: limitava-se a testemunhá-lo, a observá-lo talvez, e corrigi-lo com o olhar. Percebia-o, vivia-o de muitas distâncias e de muitos ângulos. Na décima quarta noite roçou a artéria pulmonar com o dedo indicador e a seguir o coração todo, por fora e por dentro. O exame deixou-o satisfeito. Deliberadamente não sonhou durante uma noite: depois, tornou a pegar no coração, invocou o nome de um planeta e empreendeu a visão de outros dos orgãos principais. Em menos de um ano, chegou ao esqueleto, às pálpebras. O inumerável cabelo foi talvez a tarefa mais difícil. Sonhou um homem inteiro, um mancebo, mas este não se levantava nem falava nem podia abrir os olhos. Noite após noite, o homem sonhou-o adormecido.
(...)
No sonho do homem que sonhava o sonhado acordou.
(...)
Em geral, os seus dias eram felizes; ao fechar os olhos pensava: agora vou estar com o meu filho ou então, mais raramente: o filho que gerei espera por mim e não existirá se eu não for ter com ele.
(...)
Compreendeu com uma certa amargura que o seu filho estava pronto para nascer - e talvez até impaciente. Nessa noite beijou-o pela primeira vez e enviou-o para o outro templo cujos despojos branqueavam rio abaixo, a muitas léguas da inextricável floresta de pântanos. Mas antes (para que ele nunca soubesse que era um fantasma, para que se julgase um homem como os outros) infundiu-lhe o esquecimento total dos seus anos de aprendizagem.
(...)
Ao fim de um tempo que certos narradores da sua história preferem calcular em anos e outros em lustres, à meia noite acordaram-no dois remadores: não conseguiu ver as caras deles, mas falavam-lhe de um homem mágico num templo do Norte, capaz da andar sobre o fogo sem se queimar. O mago lembrou-se de repente das palavras do deus. Lembrou-se de que, de todas as criaturas que compõem o globo, o fogo era a única que sabia que o seu filho era um fantasma. Esta recordação, que o descansou ao princípio, acabou por atormentá-lo. Receou que o seu filho meditasse nesse privilégio anormal e descobrisse de qualquer modo a sua condição de mero simulacro. Não ser um homem, ser a projecção do sonho de outro homem, que humilhação incomparável, que vertigem!
(...)
As ruínas do santuário do deus do fogo foram destruídas pelo fogo. Numa madrugada sem pássaros o mago viu abater-se sobre as paredes o incêndio concêntrico. Por um instante, pensou refugiar-se nas águas, mas logo compreendeu que a morte vinha coroar a sua velhice e absolvê-lo dos seus trabalhos. Caminhou ao encontro dos círculos de fogo. Estes não morderam a sua carne, acariciaram-no e inundaram-no sem calor e sem combustão. Com alívio, com humilhação, com terror, compreendeu que ele próprio também era uma aparência, que outro estava a sonhá-lo.

Jorge Luís Borges - As Ruínas Circulares - Ficções

# 12


Por vezes o destino é como uma pequena tempestade de areia que não pára de mudar de direcção. Tu mudas de rumo, mas a tempestade de areia vai atrás de ti. Voltas a mudar de direcção, mas a tempestade persegue-te, seguindo no teu encalço. Isto acontece uma vez e outra e outra, como uma espécie de dança maldita com a morte ao amanhecer. Porquê? Porque esta tempestade não é uma coisa que tenha surgido do nada, sem nada que ver contigo. Esta tempestade és tu. Algo que está dentro de ti. Por isso, só te resta deixares-te levar, mergulhar na tempestade, fechando os olhos e tapando os ouvidos para não deixar entrar a areia e, passo a passo, atravessá-la de uma ponta à outra. Aqui não há lugar para o sol nem para a lua; a orientação e a noção de tempo são coisas que não fazem sentido. Existe apenas areia branca e fina, como ossos pulverizados, a rodopiar em direcção ao céu. É uma tempestade de areia assim que deves imaginar.

(...)

E não há maneira de escapar à violência da tempestade, a essa tempestade metafísica, simbólica. Não te iludas: por mais metafísica e simbólica que seja, rasgar-te-á a carne como mil navalhas de barba. O sangue de muita gente correrá, e o teu juntamente com ele. Um sangue vermelho, quente. Ficarás com as mãos cheias de sangue, do teu sangue e do sangue dos outros.E quando a tempestade tiver passado, mal te lembrarás de ter conseguido atravessá-la, de ter conseguido sobreviver. Nem sequer terás a certeza de a tormenta ter realmente chegado ao fim. Mas uma coisa é certa. Quando saíres da tempestade já não serás a mesma pessoa. Só assim as tempestades fazem sentido.


Haruki Murakami - Kafka à Beira-Mar

terça-feira, 11 de junho de 2013

# 11


O trovejar abafado de diálogo chega através das paredes, depois de um coro de gargalhadas. Depois mais trovejar. A maior parte das faixas de risos na televisão foi gravada no princípio dos anos 50. Hoje em dia, a maior parte das pessoas que se ouve, está morta.
O martelar e martelar e martelar de uma bateria chega até cá abaixo através do tecto. O ritmo muda. Talvez a batida se comprima, mais depressa, ou se espraie, mais devagar, mas não pára.
Subindo através do chão, alguém está a ladrar a letra de uma canção. Estas pessoas que precisam da televisão ou da aparelhagem estereofónica ou do rádio a funcionar o tempo todo. Estas pessoas tão assustadas com o silêncio. Estes são os meus vizinhos. Estes viciados em som. Estes silêncio-fóbicos.
O riso dos mortos vem de todas as paredes.
Hoje em dia, isto é o que passa por lar doce lar.
Este cerco de barulho.

(...)

No meu apartamento, o tecto está a vibrar ao som de uma música rápida qualquer. As paredes estão a murmurar com vozes de pânico. Ou uma antiga múmia egípcia amaldiçoada voltou à vida e está a tentar matar as pessoas da porta ao lado ou estão a ver um filme.
Por baixo do chão, há alguém a gritar, um cão a ladrar, portas a bater com violência, os gritos à leiloeiro de uma canção qualquer.

(...)

Estes viciados em distracção. Estes atenção-fóbicos.
O velho George Orwell percebeu tudo ao contrário.
O Grande Irmão não está a observar. Está a cantar e a dançar. Está a tirar coelhos de uma cartola. O Grande Irmão está ocupado em prender-te a atenção em cada momento que estás acordado. Está a certificar-se de que estás sempre distraído. Está a certificar-se de que estás totalmente absorto.
Está a certificar-se de que a tua imaginação definha. Até ser tão útil como o apêndice. Está a certificar-se de que a tua atenção está sempre preenchida.
E isto de estar a ser alimentado é pior do que estar a ser observado. Com o mundo sempre a encher-te, ninguém tem de se preocupar com o que vai na tua mente. Com a imaginação de toda a gente atrofiada, ninguém será nunca uma ameaça para o mundo.

(...)

Os peritos na cultura da Grécia Antiga dizem que as pessoas naquela altura não viam os pensamentos como pertencendo a elas mesmas. Quando os antigos gregos tinham um pensamento, ocorria-lhes como sendo um deus ou uma deusa a dar uma ordem. Apolo estava a dizer-lhes para serem corajosos. Atena estava a dizer-lhes para se apaixonarem.
Agora as pessoas ouvem um anúncio a batatas fritas de coalhada e correm para comprá-las, mas agora chamam a isto livre-arbítrio.

Chuck Palahniuck - Lullaby

segunda-feira, 10 de junho de 2013

# 10


a vida ri-se das previsões e põe palavras onde imaginámos silêncios, e súbitos regressos quando pensámos que não voltaríamos a encontrar-nos.

José Saramago - A Viagem do Elefante

domingo, 9 de junho de 2013

# 9


As revelações tardias podem partir em estilhaços tudo o que desde sempre demos por adquirido - todas as astúcias de uma vida inteira de experiência e labor, interpretando e reinterpretando continuamente as nossas ilusões sedimentadas, o trabalho de formiga das nossas tropas defensivas de choque, que continuarão a manter as mais perversas (ou insanas) barreiras.


Saul Bellow - Uma recordação minha

# 8


A depressão é urna boneca russa, e na última boneca estão a faca, a lâmina de barbear, o veneno, as águas profundas e o salto para um grande abismo.

Stig Dagerman - A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer