O desígnio que o guiava não era impossível, se bem
que sobrenatural. Queria sonhar um homem: queria sonhá-lo com uma
integridade minuciosa e impô-lo à realidade. Este projecto mágico
esgotara o espaço inteiro da sua alma; se alguém lhe perguntasse o seu
próprio nome ou qualquer pormenor da sua vida anterior, não seria capaz
de responder.
(...)
Ao
princípio, os sonhos eram caóticos; pouco depois, foram de natureza
dialéctica. O forasteiro sonhava-se no meio de um anfiteatro circular,
que era de certo modo o templo incendiado: magotes de alunos taciturnos
fatigavam os degraus; as caras dos das últimas filas pendiam há muitos
séculos de distância e a uma altura estelar, mas viam-se com uma
precisão absoluta. O homem dava-lhes lições de anatomia, de cosmografia,
de magia: os rostos escutavam com ansiedade e tentavam responder com
entendimento, como se adivinhassem a importância daquele exame, que
deveria redimir um deles da vã aparência e o interpolaria no mundo real.
O homem, no sonho e acordado, considerava as respostas dos seus
fantasmas, não se deixava enganar pelos impostores, adivinhava em certas
perplexidades uma inteligência crescente. Procurava uma alma que
merecesse participar do universo.
Ao cabo de
nove ou dez noites compreendeu com certa amargura que nada podia esperar
dos alunos que aceitavam passivamente a sua doutrina, mas sim dos que
arriscavam, às vezes, uma contradição razoável. Os primeiros, embora
dignos de amor e afeição, não podiam elevar-se a indivíduos; os últimos
preexistiam um pouco mais. Uma tarde (agora também as tardes eram
tributárias do sonho, agora só estava acordado umas horinhas ao
amanhecer) despediu para sempre o vasto colégio ilusório e ficou apenas
com um único aluno.
(...)
Um dia o homem emergiu do sono como de um deserto viscoso, fitou a vã
luz da tarde que começou por confundir com a da aurora, e compreendeu
que não tinha sonhado. Durante essa noite toda e todo o dia, abateu-se
sobre ele a intolerável lucidez da insónia. Quis explorar a floresta,
extenuar-se; só a custo conseguiu pela cicuta uns quantos lampejos de
sono fraco, riscados fugazmente por visões de tipo rudimentar:
inaproveitáveis. Quis voltar a reunir o colégio e mal articulou umas
breves palavras de exortação, logo este se deformou e desfez. Na sua
quase perpétua vigília, lágrimas de cólera queimavam-lhe os velhíssimos
olhos.
Compreendeu que a tarefa de modelar a matéria incoerente e vertiginosa de que se compõem os sonhos é a mais árdua a que se pode entregar um homem (...).
Compreendeu que a tarefa de modelar a matéria incoerente e vertiginosa de que se compõem os sonhos é a mais árdua a que se pode entregar um homem (...).
(...)
Para retomar a tarefa, esperou que o disco da lua
ficasse perfeito. Depois, à tarde purificou-se nas águas do rio, adorou
os deuses planetários, pronunciou as sílabas lícitas de um nome poderoso
e adormeceu. Quase imediatamente, sonhou com um coração a bater.
Sonhou-o
activo, quente, secreto, do tamanho de um punho cerrado, de cor
escarlate na penumbra de um corpo humano ainda sem cara nem sexo, com
minucioso amor sonhou-o durante catorze lúcidas noites. Noite a noite,
percebia-o com uma evidência cada vez maior. Não o tocava: limitava-se a
testemunhá-lo, a observá-lo talvez, e corrigi-lo com o olhar.
Percebia-o, vivia-o de muitas distâncias e de muitos ângulos. Na décima
quarta noite roçou a artéria pulmonar com o dedo indicador e a seguir o
coração todo, por fora e por dentro. O exame deixou-o satisfeito.
Deliberadamente não sonhou durante uma noite: depois, tornou a pegar no
coração, invocou o nome de um planeta e empreendeu a visão de outros dos
orgãos principais. Em menos de um ano, chegou ao esqueleto, às
pálpebras. O inumerável cabelo foi talvez a tarefa mais difícil. Sonhou
um homem inteiro, um mancebo, mas este não se levantava nem falava nem
podia abrir os olhos. Noite após noite, o homem sonhou-o adormecido.
(...)
No sonho do homem que sonhava o sonhado acordou.
(...)
Em geral, os seus dias eram felizes; ao fechar os olhos pensava: agora vou estar com o meu filho ou então, mais raramente: o filho que gerei espera por mim e não existirá se eu não for ter com ele.
(...)
Compreendeu com uma certa amargura que o seu filho
estava pronto para nascer - e talvez até impaciente. Nessa noite
beijou-o pela primeira vez e enviou-o para o outro templo cujos despojos
branqueavam rio abaixo, a muitas léguas da inextricável floresta de
pântanos. Mas antes (para que ele nunca soubesse que era um fantasma,
para que se julgase um homem como os outros) infundiu-lhe o esquecimento
total dos seus anos de aprendizagem.
(...)
Ao
fim de um tempo que certos narradores da sua história preferem calcular
em anos e outros em lustres, à meia noite acordaram-no dois remadores:
não conseguiu ver as caras deles, mas falavam-lhe de um homem mágico num
templo do Norte, capaz da andar sobre o fogo sem se queimar. O mago
lembrou-se de repente das palavras do deus. Lembrou-se de que, de todas
as criaturas que compõem o globo, o fogo era a única que sabia que o seu
filho era um fantasma. Esta recordação, que o descansou ao princípio,
acabou por atormentá-lo. Receou que o seu filho meditasse nesse
privilégio anormal e descobrisse de qualquer modo a sua condição de mero
simulacro. Não ser um homem, ser a projecção do sonho de outro homem,
que humilhação incomparável, que vertigem!
(...)
As ruínas do santuário do deus do fogo foram destruídas pelo fogo. Numa
madrugada sem pássaros o mago viu abater-se sobre as paredes o incêndio
concêntrico. Por um instante, pensou refugiar-se nas águas, mas logo
compreendeu que a morte vinha coroar a sua velhice e absolvê-lo dos seus
trabalhos. Caminhou ao encontro dos círculos de fogo. Estes não
morderam a sua carne, acariciaram-no e inundaram-no sem calor e sem
combustão. Com alívio, com humilhação, com terror, compreendeu que ele
próprio também era uma aparência, que outro estava a sonhá-lo.
Jorge Luís Borges - As Ruínas Circulares - Ficções