quarta-feira, 31 de julho de 2013

# 56



Brilha o céu, tarda a noite, o tempo é lerdo, a vida baça, o gesto flácido. Debaixo de sombras irisadas, leio e releio os meus livros, passeio, rememoro, devaneio, pasmo, bocejo, dormito, deixo-me envelhecer.

Mário de Carvalho - Um Deus Passeando Pela Brisa Da Tarde

segunda-feira, 29 de julho de 2013

# 55



É de índole pontual, e em pensamento comparece com rigor aos locais de encontro, onde espera apreensiva por seu corpo, sempre dez minutos atrasado.

Chico Buarque - Benjamin

domingo, 28 de julho de 2013

# 54



(...) Virou-se para a mesa repleta de papéis, livros, e do meio daquela desordem, retirou um desenho de Nému. Pegou de novo na caneta e rabiscou por baixo do desenho: Subo à macieira sonhada pela criança, colho maçãs pintadas a marcador amarelo. E numa delas descubro a lagarta às riscas, como a tua camisola de marujo. 
Era quase noite, recordo-me, quando desci da árvore e a criança que foras antes de mim não tinha nome. Hoje, salto desta folha de papel para a noite, perco a infância na poeira dos dias.
Regresso lentamente à minha idade, e um astro refulge sobre o teu rosto adormecido.
Perdeste o nome como eu há muito perdera a infância. Mas quando o teu olhar me sulca e me fere o corpo e me devolve, por segundos, o que perdi, há um amanhecer feliz. E tens um nome, e não voltaremos a estar sozinhos.
Beno recordaria aquela macieira muito mais vezes. Era o melhor retrato de Nému, trazia-o sempre dobrado na carteira. (...) Um dia, mais tarde, olharia as poucas fotografias de Nému que guardara numa gaveta, e lembrar-se-ia certamente da noite de agonia em que resolvera queimá-las e não fora capaz de o fazer. Tinha chegado à conclusão de que nenhuma delas lhe transmitia a leveza, a lentidão, a quase etérea beleza, os gestos precisos de Nému. A macieira sim, movia-se para fora da folha de papel, parecia crescer, avançava no tempo, recuava, dava flor ou frutos, e de cada vez que a olhava era uma árvore diferente, viva.
As fotografias, ao contrário do desenho da macieira, tinham fixado instantes agora mortos, escondidos ou desfeitos pelo tempo da memória.


Al Berto - Lunário

# 53



- O mais esquisito de tudo é que me mudou o pensamento (...) Não sei, é como se tivesse outra cabeça, ocorrem-me constantemente coisas em que nunca teria pensado (...) Como se fosse outra pessoa desde então, ou outro tipo de pessoa com uma configuração mental desconhecida e alheia, alguém dado a fazer associações e a sobressaltar-se com elas. Oiço a sirene de uma ambulância ou da polícia ou dos bombeiros e penso em quem estará a morrer ou a arder ou se calhar a asfixiar-se,e, no mesmo instante vem-me a ideia angustiosa de quantos ouviram a dos guardas que apareceram lá para deter o mendigo, ou o da emergência médica que assistiu e recolheu o Miguel na rua, tê-las-ão ouvido distraidamente ou inclusivamente sentindo-as como um incómodo, que maneira de apitar, sabes como é, aquilo que normalmente dizemos todos, que exagero, que estrondo, de certeza que não é caso para tanto. Quase nunca nos perguntamos a que desgraça concreta correspondem, são um som familiar da cidade e além disso um som sem conteúdo específico, uma simples incomodidade já vazia ou abstracta. Dantes, quando não havia muitas nem apitavam tão alto, nem se suspeitava que os motoristas as utilizavam sem motivo, para irem mais depressa e lhes abrirem caminho, as pessoas assomavam às varandas para saber o que estava a acontecer, e até confiavam que os jornais do dia seguinte o contariam. Agora já ninguém vem ver, esperamos que se afastem e que levem o doente, o acidentado, o ferido, o quase morto, para fora do nosso campo auditivo, para que assim não tenham que ver connosco nem nos ponham os nervos em franja. Agora já voltei a não ir ver, mas nas primeiras semanas depois da morte do Miguel não podia evitar chegar-me a uma varanda ou a uma janela e tentar avistar o carro da polícia ou a ambulância para acompanhar o seu percurso com o olhar até onde pudesse, mas a maior parte das vezes não os vemos de casa, só se ouvem, de modo que deixei de o fazer há pouco tempo, e no entanto de cada vez que uma toca ainda interrompo o que esteja a fazer e estico o pescoço e escuto até desaparecer, escuto-as como se fossem lamentos e súplicas, como se cada uma dissesse: "Por favor, sou um homem num estado muito grave que se debate entre a vida e a morte e além disso não tenho culpa, não fiz nada para me esfaquearem, saí do carro como em tantos outros dias e de repente senti um aguilhão nas costas, e depois outro e outro noutras partes do corpo e nem sequer sei quantos, dei-me conta de que estava sangrando por todos os lados e de que ia morrer sem me ter afeito à ideia nem o ter procurado. Deixem-me passar, suplico-vos, vocês não vão nem a metade da velocidade, e se houver a possibilidade de me salvar ela depende de chegar a tempo. Hoje é o dia dos meus anos e a minha mulher não sabe de nada, ainda deve estar à minha espera sentada num restaurante e disposta a festejá-lo, deve ter um presente para mim, uma surpresa, não deixem que ela dê comigo já morto."  (...) Eu nunca tinha pensado os pensamentos de ninguém, aquilo que outro possa pensar, nem sequer ele, não é o meu estilo, falta-me imaginação, a minha cabeça não dá para isso. E agora, pelo contrário, faço-o quase a todo o momento. Digo-te que o cérebro se me alterou, e é como se não me reconhecesse; ou se calhar, também isso me ocorre, como se não me tivesse conhecido durante toda a minha vida anterior, nem o Miguel me tivesse conhecido então: na realidade ele não teria podido e eu teria estado fora do seu alcance, não é estranho?, se a verdadeira fosse esta que associa coisas constantemente, coisas que há uns meses me teriam parecido díspares e não associáveis. Se sou aquela que sou a seguir à sua morte, para ele fui sempre outra diferente, e teria continuado a ser a que já não sou, indefinidamente, se ele tivesse continuado com vida.


Javier Marias - Os enamoramentos

sexta-feira, 26 de julho de 2013

# 52



A minha primeira caçada aos gambuzinos aconteceu pelos tempos em que eu andava ainda na escola. Convidaram-me e explicaram-me. Até me ofereceram o saco conveniente e necessário. Excitado, preparei-me em casa. Treinei devidamente, emboscado atrás da porta, a tentar caçar experimentalmente o meu pai, que subia a escada. Pareceu-me que não gostou. Os pais, não é...? Na noite da caçada, lá fomos. Eu entusiasmado, com a lanterna e o saco apropriado. E também a moca que estava atrás da porta, que à noite há ladrões, foi a justificação que me veio à cabeça no momento. Todos concordaram. Mas não me venham dizer que não há gambuzinos. Apanhei três. Um deles parece-me que se chamava António André e ficou coxo. Ainda está, creio. Uma fractura excelente, mesmo pela rótula. Tudo me leva a crer que a caça aos gambuzinos é realmente importante. Temos que apanhá-los. Temos mesmo. Seja lá como for.


Mário-Henrique Leiria - Novos Contos do Gin

quinta-feira, 25 de julho de 2013

# 51



A solidão é propícia ao original, ao estranhamento e à ousadia do belo, à poesia. Mas gera também o perverso, o monstruoso, o absurdo e o ilícito.

Thomas Mann - A Morte em Veneza

terça-feira, 23 de julho de 2013

# 50



(...) Queria contar-vos uma coisa que se passou há uns tempos. Parece-me que estou a tentar provar alguma coisa, e talvez consiga se puder contar-vos exactamente como isto se passou. Passou-se há uns meses mas ainda continua. Pode dizer-se que sim. Mas vai fazer-nos sentir envergonhados quando falamos de amor como se soubéssemos do que falamos.
(...)
- Eu estava de prevenção nessa noite. Foi em Maio ou em Junho. A Terri e eu tínhamo-nos acabado de sentar para comer quando ligaram do hospital. Tinha havido um acidente na auto-estrada. Um miúdo bêbedo, um adolescente, tinha espetado a carrinha do pai contra um carro com caravana e dois velhotes lá dentro. Ambos tinham mais de setenta anos. O miúdo tinha dezoito ou dezanove e estava bêbedo quando o trouxeram. Tinha levado com o volante no esterno e tinha morrido quase instantaneamente. Mas os velhos ainda estavam vivos, embora estivessem quase mortos. Tinham fracturas múltiplas e contusões, lacerações, enfim, e cada um deles tinha um traumatismo craneano. Estavam em mau estado, acreditem em mim. E tinham, claro, o peso da idade. Ela estava ainda pior do que ele. Tinha o baço perfurado e, para além disso, tinha as rótulas dos dois joelhos partidas. Mas ambos usavam o cinto de segurança que, sabe Deus, foi a única coisa que lhes valeu.
(...)
Eu olhei uma vez para o casal e disse à enfermeira das urgências para ir imediatamente chamar um neurologista e um ortopedista. Vou tentar abreviar a história. Os outros médicos apareceram, e levámos o casal para a sala de operações e trabalhámos neles quase toda a noite. Deviam ter uma reserva de vida incrível, aqueles velhos, por vezes acontece. Fizemos tudo o que podia ser feito e, pela manhã, demos-lhes cinquenta por cento de hipóteses, talvez um pouco menos, talvez trinta por cento para a mulher. Chamava-se Anna Gates e era uma mulher e peras. Ainda estavam vivos na manhã seguinte e levámo-los para a Unidade de Cuidados Intensivos, onde podíamos monitorizá-los vinte e quatro horas por dia e mantê-los sob vigilância. Estiveram nos Cuidados Intensivos durante duas semanas, talvez mais, antes de a situação estabilizar e podermos transferi-los para os quartos privados.
(...)
- Quando finalmente ficaram livres de perigo, conseguimos tirá-los dos Cuidados Intensivos, depois de percebermos que iam sobreviver. Eu apareci para os visitar todos os dias, às vezes duas vezes por dia se passasse por lá noutras rondas. Estavam ambos cobertos de gesso e ligaduras dos pés à cabeça. Já devem ter visto nos filmes, se é que ainda não viram na realidade. Eles estavam mesmo cobertos dos pés à cabeça com gesso e ligaduras, pá, mesmo dos pés à cabeça. Pareciam-se com aqueles actores a fingir, nos filmes, depois de um grande desastre. Só que neste caso era real. As cabeças estavam embrulhadas em ligaduras - tinham buracos para os olhos e um espaço para as bocas e os narizes. A Anna Gates também tinha as pernas elevadas. Estava pior do que ele, já vos disse. Estiveram os dois a soro e a glucose durante uns tempos. Bom, o Henry Gates foi quem esteve mais tempo deprimido. Continuou muito deprimido mesmo quando soube que a sua mulher ia sobreviver e recuperar. Não só por causa do acidente, embora este o tenha afectado. Ali estás tu um minuto, sabem, tudo fino e etc., de repente, bum!, estás a olhar para o abismo. E regressas à vida. É como se fosse um milagre. Mas ficas marcado. Ficas. Um dia eu estava sentado numa cadeira ao lado da cama dele e ele descreveu, devagar, falando pelo buraco da boca e por isso às vezes eu tinha de aproximar o meu rosto do dele para o conseguir ouvir, contou-me o que tinha visto, o que tinha sentido quando o carro daquele miúdo atravessou a linha divisória da estrada para o seu lado e continuou em frente. Ele disse-me que soube nesse momento que tinha chegado a sua hora, que era a última coisa que via neste mundo. Era o fim. Mas disse-me que não pensou em nada de especial, que não viu a sua vida passar-lhe à frente dos olhos, nada do género. Disse que lamentou apenas não poder ver mais a sua mulher, uma vez que tinham tido uma bela vida. Era o seu único arrependimento. Olhou em frente, agarrou no volante e viu o carro do miúdo vir contra o deles. E depois não houve nada que ele pudesse fazer excepto dizer: "Anna! Segura-te, Anna"!
(...)
O que era mais deprimente para ele, depois de lhe termos assegurado que a sua mulher ficaria boa, que estava a recuperar para satisfação de todos, o que era mais deprimente era o facto de não poderem estar fisicamente juntos. De não a poder ver e estar com ela todos os dias. Disse-me que se tinham casado em 1927 e, desde essa altura, só tinham estado separados em duas ocasiões. (...) Em toda a vida juntos, só tinham estado separados em duas ocasiões, por um breve período de tempo. Imaginem só isto. Mas, meu Deus, ele estava tão sozinho sem ela. Digo-vos, ele tinha saudades dela. Nunca soube o que significava essa palavra, saudade, até ver o que estava a acontecer a este homem. Tinha saudades ferozes dela. Desesperava pela companhia da mulher, aquele velho. Claro que se sentia melhor quando eu lhe fazia o meu relatório diário da situação de Anna - que estava a curar-se, que ia ficar boa, era só uma questão de tempo. Agora já tinha tirado o gesso e as ligaduras, mas continuava extremamente só. Eu disse-lhe que, assim que ele fosse capaz, talvez daí por uma semana, o colocaria numa cadeira de rodas e o levaria corredor abaixo a visitar a mulher. Entretanto, viria visitá-lo e falaríamos. Ele contou-me um pouco do que tinha sido a sua vida no rancho, no final dos anos 1920 e durante o princípio dos trintas. (...) Contou-me que, no Inverno, nevava o tempo todo e, durante meses a fio, não podiam deixar o rancho porque as estradas fechavam. Para além disso, tinha de alimentar o gado todos os dias durante os meses de Inverno. Ficavam os dois sozinhos e isolados, ele e a mulher. Os miúdos ainda não tinham nascido, viriam mais tarde. Mês após mês, sozinhos, a mesma rotina diária, a mesma coisa de sempre, sem terem mais ninguém com quem falar ou alguém que os viesse visitar durante esses meses de Inverno. Mas tinham-se um ao outro. Tudo o que tinham era o outro. "O que é que faziam para se entreterem?", perguntei-lhe. Estava a falar a sério. Queria saber. Não conseguia imaginar como é que as pessoas podiam viver daquela maneira. Julgo que ninguém consegue viver assim hoje em dia. (...) Querem saber qual foi a resposta dele? Ficou ali deitado e pensou na pergunta. Levou o seu tempo. Depois disse: "Íamos aos bailes todas as noites". "O quê?", disse eu. "Desculpe, Henry", disse, e inclinei-me sobre ele, julgando que tinha ouvido mal. "Íamos aos bailes todas as noites, repetiu ele. Perguntei-me o que quereria ele dizer com aquilo. Não sabia do que estava a falar, mas aguardei por uma explicação. Ele pensou novamente naqueles tempos e depois disse: "Tínhamos uma Victrola e alguns discos, doutor. Púnhamos a Victrola a tocar todas as noites e ouvíamos os discos e dançávamos na sala de estar. Todas as noites fazíamos o mesmo. Às vezes estava a nevar lá fora e a temperatura caía abaixo de zero. A temperatura desce muito naquela zona, em Janeiro e Fevereiro. Mas nós ouvíamos os discos e dançávamos em meias grossas, na sala de estar, até termos tocado todos os discos. E depois eu acendia a lareira e desligava as luzes, todas menos uma, e íamos para a cama. Nas noites em que nevava, havia tanto silêncio lá fora que conseguíamos ouvir a neve a cair. É verdade, doutor", disse ele, "às vezes consegue-se ouvir a neve a cair. Se estivermos tranquilos e a cabeça estiver limpa e estivermos em paz connosco próprios e com todas as coisas, podemos deitar-nos no escuro e ouvir a neve. Tente ouvir a neve um dia", disse ele. "Às vezes neva por estes lados, não neva? Devia tentar, um dia desses. Seja como for, íamos ao baile todas as noites. E depois íamos para a cama debaixo de imensos cobertores e dormíamos quentinhos até de manhã. Quando acordávamos conseguíamos ver o nosso próprio hálito", disse ele.
- Quando ele recuperou o suficiente para ser colocado numa cadeira de rodas (...), uma enfermeira e eu levámo-lo pelo corredor abaixo até ao quarto onde a sua mulher se encontrava. Ele fizera a barba nessa manhã e pusera água-de-colónia. Estava vestido com o roupão e o pijama do hospital, ainda em convalescença, sabem, mas manteve-se muito direito na cadeira de rodas. Ainda assim estava nervoso como um gato, dava para ver. Quando nos aproximámos do quarto ganhou alguma cor e uma expressão de antecipação no rosto, uma expressão que não consigo descrever. Eu empurrava a cadeira e a enfermeira caminhava ao meu lado. Ela estava a par da situação, tinha percebido o contexto. As enfermeiras, sabem, já viram quase tudo, e poucas coisas as afectam, mas, naquela manhã, a própria enfermeira parecia nervosa. A porta abriu-se e empurrei Henry para dentro do quarto. A senhora Gates, a Anna, ainda estava imobilizada, mas conseguia mexer a cabeça e o braço esquerdo. Tinha os olhos fechados, mas abriu-os quando entrámos. Ainda estava enrolada nas ligaduras, mas apenas da zona pélvica para baixo. Empurrei Henry para o lado esquerdo da cama e disse: "Anna, tem companhia. Tem companhia, querida". Mas não consegui dizer mais nada. Ela exibiu um pequeno sorriso e o seu rosto iluminou-se. A mão dela surgiu de baixo do lençol. Tinha a pele azulada e cheia de contusões. Henry tomou a mão dela nas suas. Segurou-a e beijou-a. Depois disse: "Olá, Anna. Como é que está a minha querida? Lembras-te de mim?" Desciam-lhe lágrimas pelas bochechas. Ela assentiu com um aceno de cabeça. "Tive saudades tuas", disse ele. Ela continuou a acenar. A enfermeira e eu pusemo-nos a andar dali. Ela começou a chorar assim que saímos do quarto, e aquela enfermeira, digo-vos, é das duras. Foi uma experiência única. Depois disso ele foi levado ao quarto da mulher todas as manhãs e todas as tardes. Tratámos de tudo para poderem almoçar e jantar juntos no quarto dela. Nos intervalos ficavam sentados lado a lado e davam as mãos e falavam. O número de coisas que tinham para falar parecia não ter fim.


Raymond Carver . Principiantes - O que sabemos do amor

domingo, 21 de julho de 2013

# 49



(...) a paixão, seja ela qual for, é efémera (...) como a vida e tem de ser partilhada como um dom - sem demora!

Al Berto - Lunário

# 48



(...) quem escolhe as poesias é ela, foi sempre ela, mas assim é que está certo, ela sabe, sabe imensas coisas, a Frau, conhece as horas da minha vida, dos dias da minha vida, como esses livros de horas que os frades usavam antigamente...a vida passa num ápice, sabes, mas como são lentas certas tardes de domingo, a Frau sempre soube escolher a poesia certa para o momento certo, quando eu cá vinha, obviamente, porque muitas vezes não aparecia, ou melhor, quase nunca lá estive, mas sabes o que ela me disse? Disse-me uma coisa que me deixou perturbado, quase comovido, é estranho, porque a comoção tem a ver com os humores de que somos feitos, e um mineral como eu já não tem humidade, e no entanto quando me disse isto com aquelas suas palavras tão avaras quanto ela, naquele italiano duro que sempre fingiu não ter aprendido capazmente nos mais de setenta anos que aqui passou, eu voltei a cara para as persianas para não deixar transparecer que esta pedra não secou completamente, e as ripas das persianas puseram-se a tremular, não pelo calor lá de fora, mas porque ela me disse, com o seu ar desabrido que, mesmo quando eu estava longe e corria perigo, ou ela assim julgava, todos os domingos, às cinco menos um quarto, ela ia até à sala, imaginava que servia o chocolate e dizia de si para si, em alemão, menino está na hora da poesia. E lia o poema que em seu entender me assentaria melhor nesse dia, como um viático ou um livro de horas...Tantas horas, escritor, tantas horas realmente. Quantos domingos haverá em setenta anos, melhor dizendo, em oitenta, quase?, faz-lhe as contas. Alguns milhares, assim a olho.

Antonio Tabucchi - Tristano Morre

sábado, 20 de julho de 2013

# 47



- O que é que qualquer um de nós realmente sabe sobre o amor? - perguntou Herb. - Estou a falar a sério quando digo isto, se me perdoarem a franqueza. Parece-me que somos apenas grosseiros principiantes no amor. Dizemos que amamos o outro e na verdade amamos, não tenho dúvida. Cada um de nós ama o outro e ama-o a sério. Eu amo a Terri e a Terri ama-me, e vocês os dois amam-se. Sabem de que género de amor eu estou a falar. O amor sexual, aquela atracção pela outra pessoa, o nosso parceiro, bem como o simples amor de todos os dias, o amor por aquilo que a outra pessoa é, o amor por estar com o outro, as pequenas coisas que constituem o amor de todos os dias. Também o amor carnal e, bem, chamemos-lhe assim, o amor sentimental, o cuidado diário pelo outro. Mas, por vezes, tenho alguma dificuldade em compreender o facto de também ter amado a minha primeira mulher. Mas amei, sei que amei. Por isso, antes que digam alguma coisa, eu sou como a Terri nesse aspecto. Como a Terri e o Carl. - Pensou no assunto durante um minuto e continuou. - Numa dada altura pensei que amava a minha mulher mais do que amava a própria vida, e tivemos filhos. E agora detesto-a. A sério. Como é que isso acontece? O que é que aconteceu a esse amor? Será que esse amor foi simplesmente apagado do quadro como se nunca lá tivesse estado, como se nunca tivesse acontecido? O que eu gostava de saber era o que lhe aconteceu. Gostava que alguém me explicasse. E depois há o Carl. Muito bem, voltamos ao Carl. Ele amava tanto a Terri que tentou matá-la e acaba por se matar a si próprio. - Herb fez uma pausa e abanou a cabeça. - Vocês estão juntos há dezoito meses e amam-se, é evidente, é um brilho que emanam, mas já amaram outras pessoas antes de se conhecerem. Ambos já foram casados, tal como nós. E provavelmente amaram outras pessoas antes disso. A Terri e eu estamos juntos há cinco anos, somos casados há quatro. E o que é terrível...o que é terrível mas bom ao mesmo tempo, quase que poderia dizer aquilo que nos salva, é que se alguma coisa acontecesse a qualquer um de nós - desculpem dizer isto - mas se amanhã alguma coisa acontecesse a qualquer um de nós, julgo que o outro, o seu parceiro, iria chorar a perda por algum tempo, sabem, mas depois o parceiro que sobrevivesse continuaria em frente e voltaria a amar, arranjaria outra pessoa passado algum tempo, e isto, todo este amor - Meu Deus, como é possível? - não passaria de uma memória. Talvez nem chegasse a ser memória. Talvez seja assim que deve ser.


Raymond Carver - Principiantes - O que sabemos do amor

# 46



Durante as silenciosas e sombrias noites de Inverno, o café era o centro agradável para onde todos convergiam. As luzes brilhavam com tanta intensidade que podiam ser vistas a um quarto de milha. O enorme fogão de ferro fundido, ao fundo da sala, sussurrava dando estalidos, até ficar rubro. Miss Amélia arranjara cortinas vermelhas para as janelas e comprara a um caixeiro-viajante um braçado enorme de rosas de papel que pareciam naturais.
Mas não eram só as decorações e a claridade que faziam do café aquilo que era. Havia uma razão profunda para o café ser tão enaltecido. E esta razão profunda tinha que ver com um determinado orgulho antes desconhecido. Para compreender este novo sentimento é preciso não esquecer o pouco valor que se atribui à vida humana. Muita gente dependia da fábrica, mas era rara a família que tinha o suficiente para comer e vestir. A vida pode tornar-se numa luta desordenada, apenas porque se tem de obter aquilo que é necessário para manter as pessoas vivas. E o problema reside nisto: todas as coisas têm um valor e é preciso dinheiro para as ter, pois é assim que o mundo funciona. Sabe-se quanto custa o fardo de algodão ou uma quarta de melaço. Mas a vida humana não tem preço: é-nos dada de graça e levam-na sem pagar nada. Quanto vale? A julgar pelo que nos rodeia, por vezes o seu valor é pouco ou nenhum. Muitas vezes esforçamo-nos sem descanso e as coisas não melhoram, e depois surge a sensação de que não se vale nada.
Ora, o orgulho que o café despertou na população, teve um efeito quase imediato em toda a gente, incluindo as crianças. Para ali se estar, não era preciso pagar o jantar ou um quarto de whisky. Havia bebidas a níquel para quem não pudesse pagar mais e Miss Amélia vendia uma bebida, "Cherry Juice", cor-de rosa e muito doce, a um penny o copo. As crianças adoram adormecer em casas diferentes das suas e comer à mesa dos vizinhos; em tais ocasiões, comportam-se sempre bem e sentem-se orgulhosas disso. As pessoas da terra sentiam o mesmo tipo de orgulho ao sentarem-se no café. Lavavam-se e limpavam a sola das botas antes de entrarem. Aí, pelo menos durante algum tempo, o amargo sentimento de não se valer nada neste mundo quase desaparecia.


Carson McCullers - A Balada do Café Triste

# 45



"Aqui estou eu...só, dentro e fora de mim, último passageiro da minha noite interior" (...) À sua volta crescia o silêncio, doloroso silêncio, semelhante ao que se estende por cima do mar cuja misteriosa mansidão nos acorda, obrigando-nos a descobrir, subitamente, que a solidão é muito maior do que julgávamos.

Al Berto - Lunário

terça-feira, 16 de julho de 2013

# 44



(...) os primeiros anos da vida de Marvin tinham sido difíceis. Era um dos sete filhos não desejados de um casal que a custo merecia o nome de pais, autênticos selvagens que só gostavam de pescar e vaguear pelos pântanos. Os filhos, e nascia-lhes um por ano, não passavam de um aborrecimento. À noite, quando voltavam para casa, de regresso do engenho, olhavam para as crianças como se não soubessem donde tinham surgido. Se choravam, batiam-lhes, e a primeira coisa que aprenderam neste mundo foi a procurar um canto escuro para se esconderem o melhor possível. Eram tão magros que pareciam espectros e nunca falavam, nem mesmo entre si. Por fim, os pais abandonaram-nos e ficaram à mercê da caridade pública. (...) 
Os dois mais novos, Marvin e Henry, foram adoptados por uma boa mulher, chamada Mrs. Mary Hale, que os amou como se fossem seus. Criaram-se e cresceram na sua casa. 
Mas o coração das crianças é um orgão delicado. Um cruel início de vida acaba por deformá-los de maneira singular. O coração de uma criança assim magoada pode encolher-se para sempre e endurecer como um caroço de pêssego. Ou, pelo contrário, dilatar-se de tal forma que se torna uma infelicidade para o corpo que o abriga e pode facilmente ser ferido pela coisa mais vulgar. Foi o que aconteceu a Henry Macy, tão diferente do irmão. Henry era o mais terno e dócil dos homens da povoação. Emprestava o salário aos que precisavam e ocupava-se, nessa época, das crianças cujos pais passavam a noite de sábado no café. Era uma pessoa tímida, com o aspecto de alguém cujo coração é grande, mas sofre. Marvin, pelo contrário, tornou-se ousado, indomável e cruel. O coração dele era duro como os chifres do Diabo e, até se apaixonar por Miss Amelia, só trazia, ao irmão e à boa mulher que os criara, desgostos e vergonha.

# 43



(...)

Havia um balde de gelo em cima da mesa. O gim e a água tónica eram servidos à discrição e, por alguma razão, demos por nós a falar de amor.

(...)

Terri disse que o homem com quem vivera antes de viver com Herb gostava tanto dela que a tentara matar. (...)

- Uma noite, a última que vivemos juntos, ele espancou-me. Arrastou-me pelos tornozelos pela sala de estar enquanto dizia: "Eu amo-te, não percebes? Amo-te, sua cabra". Continuou a arrastar-me pela sala, a minha cabeça a bater na mobília. - Olhou em volta da mesa, para nós, e depois olhou para as suas mãos em redor do copo. - O que é que se faz com um amor destes? (...)


- Meu Deus, não sejas tonta. Isso não é amor, e tu sabes que não é - disse Herb. - Não sei o que lhe hei-de chamar - provavelmente loucura - mas de certeza que não é amor.

- Pensa o que quiseres, mas eu sei que ele me amava - disse Terri. - Eu sei que sim. Pode parecer-te uma loucura, mas continua a ser verdade. As pessoas não são todas iguais, Herb. Claro, por vezes, ele agia como louco. Certo. Mas amava-me. Havia ali amor, Herb. Não negues isso.

(...)

- Quando me fui embora, ele bebeu veneno para ratos - disse Terri. Agarrou os próprios braços, com as mãos. - Levaram-no para um hospital, em Santa Fé, onde vivíamos, salvaram-lhe a vida, e as gengivas separaram-se-lhe dos dentes. Quero dizer, afastaram-se dos dentes. Depois disso, os dentes dele pareciam presas. Meu Deus - disse ela. Aguardou um minuto, depois largou os braços e pegou no copo.

- O que as pessoas não fazem! - disse Laura. (...) Onde é que ele anda agora?

- Está fora do circuito - disse Herb. - Está morto. (...)

- E a coisa fica ainda pior - disse Terri. - Deu um tiro na própria boca, mas nem isso fez direito. Pobre Carl - disse ela. Abanou a cabeça.

(...)

- Eu explico-te o que aconteceu - disse Herb. - Ele pegou na pistola calibre 22 que tinha comprado para nos ameaçar, a mim e à Terri; (...)

Herb fez uma pausa e girou o copo na palma da mão. Depois disse: - Deu um tiro na própria boca dentro do quarto. Alguém ouviu o tiro e foi dizer ao senhorio. Entraram no quarto com uma chave mestra, viram o que tinha acontecido e chamaram uma ambulância. Eu estava lá quando o trouxeram para as urgências. Estava a tratar de outro paciente. Ele ainda estava vivo, mas não havia nada que pudessem fazer pelo homem. Ainda assim, sobreviveu três dias. Digo-vos a sério, a cabeça dele inchou e ficou do dobro do tamanho de uma cabeça normal. Nunca vi uma coisa assim, e espero nunca voltar a ver. A Terri queria lá ir sentar-se junto dele quando soube do sucedido. Tivemos uma discussão. Achei que ela não o devia ver naquele estado.

- Quem é que ganhou a discussão - perguntou Laura.

- Eu estava no quarto quando ele morreu - disse Terri. - Nunca chegou a recuperar a consciência, e não havia qualquer esperança, mas eu sentei-me junto dele. Não havia mais ninguém.

- Ele era perigoso - disse Herb. - Se chamas a isso amor, podes ficar com ele.

- E era amor - disse Terri. - Claro que era um amor anormal aos olhos de muitos, mas ele estava disposto a morrer por ele. E morreu por ele.


Raymond Carver - Principiantes - O que sabemos do amor


# 42



É altura de se falar de amor. Miss Amelia amava o primo Lymon. Era uma coisa evidente aos olhos de toda a gente. Viviam na mesma casa, juntos, e nunca se separavam. Por conseguinte, e segundo Mrs. MacPhail, uma velha metediça com o nariz coberto de verrugas e que nunca estava quieta, e algumas outras, aqueles dois viviam em pecado. Se eram parentes, tratava-se de parentesco afastado e mesmo isso não havia maneira de se provar. Ora, Miss Amelia, com mais de seis pés de altura, era uma pessoa desajeitada e o primo Lymon um anão que mal lhe chegava à cintura. Mas tanto melhor para Mrs. MacPhail e suas comadres, gente que se regozija com ligações discordantes e mais dignas de dó que doutra coisa. Assim seja. Os sem-malícia, por seu lado, pensavam que, se os dois extraíam prazer físico um do outro, era assunto que só dizia respeito aos próprios e a Deus. Mas todas as pessoas sensatas concordavam - e a sua posição era clara - que não era esse o caso. De que natureza era, então, este amor?
Em primeiro lugar, é uma experiência a dois, mas isso não quer dizer que seja a mesma coisa para cada um. Há o que ama e o que é amado, e estes dois eram diferentes como o dia da noite. Muitas vezes o amado é apenas um estímulo para todo o amor acumulado, durante muito tempo e até àquele momento, pelo amante. De algum modo, cada amante sabe que é assim. Sente no seu íntimo que o seu amor é solitário. Depois, conhece uma nova e estranha solidão, que o faz sofrer ainda mais. De modo que só lhe resta fazer uma coisa. Deve abrigar dentro de si, o melhor que puder, esse amor; deve criar um mundo só seu, intenso e único. Diga-se ainda que este amante de que se fala agora, não precisa, necessariamente, de ser jovem nem destinado ao casamento - pode ser homem, mulher, criança, uma qualquer criatura terrena.
E quanto ao ser amado, também pode ser de qualquer espécie ou natureza. O estímulo do amor pode ser provocado pelo ser mais díspar ou exótico. Um homem pode ser avô e decrépito e ainda amar uma rapariga desconhecida que viu, uma tarde, nas ruas de Cheehaw, há mais de vinte anos. O pregador pode apaixonar-se pela mulher perdida. O ser amado pode ser pérfido, ter o cabelo oleoso ou maus hábitos. Sim, e o amante pode ver isso também como qualquer outra pessoa, sem que isso afecte o seu amor. A pessoa mais insignificante pode ser objecto de um amor selvagem, extravagante e belo como os lírios venenosos do pântano. Um homem normal pode estimular um amor ao mesmo tempo violento e humilhante, como um louco pode provocar na alma de outra pessoa um idílio simples e terno. Portanto, o valor e a qualidade do amor é decidido apenas pelo próprio amante.
É por esta razão que muitos preferem amar a ser amados. Quase toda a gente quer ser o amante. E a verdade nua e crua é esta: no íntimo, o facto de ser amado é intolerável para muita gente. O amado teme e odeia o amante, e pela melhor das razões. O amante quer sempre mais intensamente ao seu amado, ainda que isso lhe cause somente dor.


Carson McCullers - A Balada do Café Triste

domingo, 14 de julho de 2013

# 41



Não pensava em nada, embora estivesse muito ocupado interiormente. Observava-se a si mesmo. Era como se olhasse para o vazio e só de esguelha obtivesse uma indistinta noção de si.
Robert Musil - O Jovem Torless

# 40



(...) o relato de um sonho não transmite a sensação-sonho, aquele emaranhado de absurdos e surpresas, o desespero na angústia de sermos aprisionados, a sensação de sermos presas do inacreditável que é a verdadeira essência dos sonhos...(...)
- ... não, é impossível; é impossível transmitir a sensação-vida de uma época que vivemos - aquilo que constrói as suas verdades, o seu significado - a sua penetrante e subtil essência. É impossível. Vivemos como sonhamos - sós...
Joseph Conrad - O Coração das Trevas

# 39



Há dias em que tudo o que vejo me parece pleno de significados: mensagens que me seria difícil comunicar a outros, definir, traduzir por palavras, mas que precisamente por isso se me apresentam como decisivas. São anúncios ou presságios que me dizem respeito a mim mesmo e ao mundo ao mesmo tempo: e de mim, não os acontecimentos exteriores da existência mas o que acontece cá dentro, no fundo; e do mundo não um facto singular qualquer mas o modo de ser geral de tudo. Compreendem pois a minha dificuldade em falar disto, a não ser por alusões.


Italo Calvino - Se numa noite de Inverno um viajante

# 38



O sonho que nos promete o impossível já nisso nos priva dele, mas o sonho que nos promete o possível intromete-se com a própria vida e delega nela a sua solução.


Bernardo Soares - Livro do Desassossego

sábado, 13 de julho de 2013

# 37



...Sabes, ao fim e ao cabo, numa vida conta mais aquilo que não se recorda do que aquilo que se recorda (...) Havíamos de ter memória de elefante, que é coisa que os homens não têm, talvez algum dia a inventem, electrónica, quem sabe, uma chapinha do tamanho de uma unha enfiada no cérebro, com o registo da nossa vida toda...A propósito de elefantes, de todos os rituais fúnebres que as criaturas deste mundo excogitaram, sempre admirei o dos elefantes, que têm uma estranha forma de morrer, sabias? Quando um elefante sente que chegou a sua hora afasta-se da manada, mas não o faz sozinho, escolhe um companheiro que vá com ele, e abalam. Avançam pela savana, muitas vezes a trote, depende da urgência do moribundo...e caminham, caminham, podem fazer quilómetros e quilómetros, até o moribundo decidir que é ali que quer morrer, então dá umas quantas voltas e traça um círculo, porque sabe que chegou a hora de morrer, leva a morte dentro de si mas tem de colocá-la no espaço, como se se tratasse de um encontro, como se quisesse olhar a morte de frente, fora dele, e lhe dissesse bom dia senhora morte, cheguei...trata-se de um círculo imaginário, naturalmente, mas precisa dele para geografizar a morte, por assim dizer...e só ele pode entrar naquele círculo, porque a morte é um assunto privado, muito privado, e ninguém pode lá entrar senão quem está a morrer...e aí chegado pede ao companheiro que o deixe, adeus e muito obrigado, e o outro regressa à manada...


Antonio Tabucchi - Tristano Morre

# 36



Quando somos abandonados podemos fantasiar com um regresso, com que se faça luz um dia para quem nos abandonou e volte à nossa almofada, mesmo que saibamos que já nos substituiu e está enredado com outra mulher, noutra história, e que só vai lembrar-se de nós se de repente lhe correr mal a nova, ou se insistirmos e nos tornarmos presentes contra a sua vontade e tentarmos preocupá-lo ou adoçá-lo ou causar-lhe pena ou nos vingarmos, fazer-lhe sentir que nunca se livrará de nós de todo, que não queremos ser uma recordação minguante mas sim uma sombra inamovível que o vai rondar e espiar sempre, e tornar-lhe a vida impossível, e na realidade fazer com que nos odeie. Em contrapartida, não se pode fantasiar com um morto, a não ser que tenhamos perdido o juízo, há os que escolhem perdê-lo, ainda que transitoriamente, os que consentem nisso conseguindo convencer-se de que o que aconteceu aconteceu, o inverosímil e até o impossível, o que nem sequer cabia no cálculo de probabilidades pelo qual nos regemos para nos levantarmos todos os dias sem que uma nuvem plúmbea e sinistra nos inste a fechar os olhos outra vez, pensando: "Ora, afinal estamos todos condenados. Na realidade não vale a pena. Façamos o que fizermos, estaremos só à espera, como mortos de licença, como alguém disse uma vez."


Javier Marias - Os enamoramentos

# 35



A vida não está por ordem alfabética com há quem julge. Surge…ora aqui, ora ali, como muito bem entende, são migalhas, o problema depois é juntá-las, é esse montinho de areia, e este grão que grão sustém? Por vezes, aquele que está mesmo no cimo e parece sustentado por todo o montinho, é precisamente esse que mantém unidos todos os outros, porque esse montinho não obedece ás leis da física, retira o grão que aparentemente não sustentava nada e esboroa-se tudo, a areia desliza, espalma-se e resta-te apenas traçar uns rabiscos com o dedo, contradanças, caminhos que não levam a lado nenhum, e continuas à nora, insistes no vaivém, que é feito daquele abençoado grão que mantinha tudo ligado…até que um dia o dedo resolve parar, farto de tanta garatuja, deixaste na areia um traçado estranho, um desenho sem jeito nem lógica, e começas a desconfiar que o sentido de tudo aquilo eram as garatujas.


Antonio Tabucchi - Tristano Morre

# 34



(...) deserto é tudo quanto esteja ausente dos homens, ainda que não devamos esquecer que não é raro encontrar desertos e securas mortais em meio de multidões.

José Saramago - O Evangelho segundo Jesus Cristo

# 33



Assim vêm pessoas até nós, dando sinal de coisas importantes. Logo passam; mas quem tem olhos e ouvidos recebe prendas inestimáveis.

Nuno Bragança - A Noite e o Riso

# 32



Entre os factos externos e o seu eu, sim, entre as suas próprias emoções e o seu eu mais remoto, que ansiava por entendê-las, haveria sempre uma linha divisória que, como um horizonte, recuava ante o seu anseio.
Robert Musil - O Jovem Torless

sexta-feira, 12 de julho de 2013

# 31



- A vida é um problema complicado - decretou Armindo o corrector, enquanto cortava com precisão mais um pedaço do rosbife à sua frente. A luz discretamente tamisada do QUATRO ASES fazia realçar a transparência do vinho no copo alto, junto ao prato.
- Não mais complicado do que qualquer outro - retorquiu Guilhermino o xadrezista que, no lado oposto da mesa, se limitava a um puré de legumes e queijo de soja. Era vegetariano. E também Grande Mestre.
- Desculpem-me a interrupção - permitiu-se dizer o 'maître' com uma leve inclinação, aparecendo junto à mesa. - Mas creio dever informar os senhores que, por um engano inesperado, o chefe da cozinha deitou no rosbife a estricnina que tínhamos para usar nas ratoeiras. É lamentável. Podem crer que a casa está sinceramente penalizada com o acontecimento. - Com um sorriso discreto e compreensivo, retirou-se deslizando e desapareceu entre o ruído animado da sala.
Armindo estremeceu, contra vontade. O rosto mudou-lhe um pouco. Para verde. E arrotou.
Então teve um movimento em que parecia retorcer-se e começou a inclinar-se para o prato.
- Realmente não mais complicado do que qualquer outro - insistiu Guilhermino, enquanto desviava o copo para que o corrector não lhe acertasse com a cabeça. Levou à boca um pouco mais de puré de legumes. Com prazer.
- Queiram desculpar-me ainda mais esta interrupção - disse o 'maître', reaparecendo-lhes ao lado e inclinando-se levemente.
- Parece-me ser de minha obrigação informar os senhores que, por engano realmente impróprio, o chefe da cozinha deitou no puré de legumes o arsénico que estava destinado aos cães vadios. Permito-me afirmar que a casa lamenta, e que isto não voltará a acontecer tão cedo. - Com o sorriso discreto retirou-se, deslizando até desaparecer entre as mesas murmurantes.
Guilhermino o xadrezista ficou a olhar o espaço. Apenas a imaginar como conseguiria, só com um copo, o paliteiro e o saleiro, dar cheque à garrafa de Armindo o corrector. Então sentiu a dor que, fulgurante, lhe subia dos intestinos.
Pelo chão alcatifado começavam a estrebuchar clientes.


Mário-Henrique Leiria - Novos Contos do Gin

# 30



Será lei geral que exista em nós algo mais forte, mais belo, maior, mais apaixonado, mais sombrio do que nós mesmos? Algo sobre o qual exercemos tão pouco poder? Podemos apenas espalhar milhares de sementes sem objectivo, até que uma delas repentinamente floresça como uma flama escura, crescendo muito acima de nós?

Robert Musil - O Jovem Torless

# 29



As pessoas envelhecem. As nações envelhecem. Os problemas envelhecem. Às vezes envelhecem tanto que deixam de existir.


Philip Roth - A Mancha Humana

terça-feira, 9 de julho de 2013

# 28



Há sempre um momento em que já não sabemos mais se estamos a mentir, ou se o que inventamos é mais verdadeiro que nós próprios.
Robert Musil - O Jovem Torless

# 27



Um pensamento - mesmo que tenha passado pela nossa mente há muito tempo - só viverá no instante em que alguma coisa, que já não é o pensar, que já não é a lógica, se acrescenta a ele, de modo que sentimos a sua verdade para além de qualquer justificação, como uma âncora que dilacera a carne viva e ensanguentada...uma grande compreensão só se realiza pela metade no círculo de luz da nossa mente; a outra metade realiza-se no solo escuro do mais íntimo de nós e é, antes de mais nada, um estado de alma em cuja porta extrema, como uma flor, pousa o pensamento.
Robert Musil - O Jovem Torless

# 26



E depois, que importa que tenha levado uma vida estúpida? Qualquer pessoa com alguma inteligência sabe que está a levar uma vida estúpida mesmo enquanto está a levá-la. Qualquer pessoa com alguma inteligência compreende que está destinada a levar uma vida estúpida porque não há outra espécie de vida.


Philip Roth - Teatro de Sabbath

# 25



E imagine quem puder minha pessoa de criança frágil, caixilhos de solidão acolchoada contra micróbios e correntes de ar.

Nuno Bragança - A Noite e o Riso

segunda-feira, 8 de julho de 2013

# 24



As parvoíces em que temos de nos meter para chegarmos onde temos de chegar, a extensão dos erros que precisamos de fazer! Se nos informassem antecipadamente de todos os erros, diríamos não, não posso fazer isso, têm de arranjar outro qualquer, eu sou demasiado esperto para fazer essas asneiras.

Philip Roth - Teatro de Sabbath

# 23



- (...) O futuro é um mundo em que há de tudo.
- Como na loja da esquina? - comentou Gauna. - É o que reza a propaganda, mas, creia-me, quando você pede alguma coisa, respondem-lhe que já não há.

Adolfo Bioy Casares - O Sonho dos Heróis

domingo, 7 de julho de 2013

# 22



Ouve o que encontrei hoje na biblioteca, quando estava a ler os jornais. Escuta. - Tirou um pedaço de papel da algibeira dos jeans. - Copiei de um jornal. Palavra por palavra. Journal of Medical Ethics. «Propõe-se que a felicidade» - levantou os olhos do papel e esclareceu: - o itálico na felicidade é deles - «Propõe-se que a felicidade seja classificada como perturbação psiquiátrica e incluída em futuras edições dos manuais de diagnóstico especializados sob a nova designação de importante perturbação afectiva, do tipo agradável. Numa resenha da literatura relevante está demonstrado que a felicidade é estatisticamente anormal, consiste num discreto aglomerado de sintomas. Está associada a uma ordem de anomalias cognitivas e provavelmente reflecte o funcionamento anormal do sistema nervoso central. Persiste uma possível objecção a esta proposta: a de que a felicidade não é avaliada negativamente. No entanto, esta objecção é rejeitada como sendo cientificamente irrelevante».

 

Philip Roth - Teatro de Sabbath

sábado, 6 de julho de 2013

# 21



O passado é um imenso pedregal que muitos gostariam de percorrer como se de uma auto-estrada se tratasse, enquanto outros, pacientemente, vão de pedra em pedra, e as levantam, porque precisam de saber o que há por baixo delas.

José Saramago - A Viagem do Elefante

# 20



Apesar de tudo, a vida é agradável, tolera-se. À segunda segue-se a terça e depois a quarta. A mente constrói anéis; a identidade torna-se mais robusta; a dor é absorvida no processo de crescimento. Sempre a abrir-se e a fechar-se, zumbindo cada vez mais, a velocidade e a febre da juventude são aproveitadas para o trabalho, até o ser nada mais parecer do que o mecanismo de um relógio. Com que velocidade a corrente segue de Janeiro a Dezembro! Somos arrastados por tudo aquilo que se nos tornou tão familiar que não chega a projectar sombra. Flutuamos, flutuamos...

(...)

À segunda segue-se a terça, depois a quarta e a quinta. Cada dia espalha a mesma onda de bem-estar, repete a mesma curva de ritmo; cobre a areia fresca com um arrepio ou constrói uma pequena teia de espuma. E é assim que o ser começa a deixar crescer anéis, a identidade torna-se mais robusta. Aquilo que antes era furtivo como um pequeno grão lançado ao ar e soprado de uma lado para o outro pelas rajadas fortes da vida, passa a ser agora atirado de forma metódica numa direcção precisa, obedecendo a um objectivo - pelo menos é o que parece.


Virgínia Woolf - As Ondas

# 19



Se não considerarmos o homem que está diante de nós como um ser humano, há poucas limitações de consciência no nosso comportamento em relação a ele.

 
Paul Auster - Trilogia de Nova Iorque

# 18



(...) Mylia começou a sentir algo no estômago. A princípio esse aviso deixou-a perplexa: não era a sua dor, era outra coisa, mas igualmente forte, mais forte ainda.
Que ridículo, apeteceu-lhe dar uma gargalhada. Estou com fome, murmurou, há horas que não como. Estou aqui de noite, sozinha, mas o meu estômago veio; estou acompanhada.
O motivo de troça foi, logo de imediato, motivo de reflexão e de um certo temor, pouco explicável. Aquela dor no estômago, que manifestava a vontade de comer, essa dor era agora mais forte que a outra: a dor constante da doença, a dor que lhe traria rapidamente aquilo de que todos os grandes e pequenos medos fogem. Como é possível, perguntou Mylia, que a dor provocada pela vontade de comer pão seja mais forte? Porque os médicos já o garantiram: vou morrer da dor que agora não consigo ouvir.
Ela percebeu, claramente, que ali, junto à igreja, estavam em competição duas dores grandes: a dor que a ia matar, a dor má, assim ela a designou, e, do outro lado. a dor boa, a dor do apetite, dor da vontade de comer, dor que significa estar viva, a dor da existência, diria ela, como se o estômago fosse, naquele momento, ainda em plena noite, a evidente manifestação da humanidade, mas também das suas relações ambíguas com os mistérios de que nada se sabe. Estava viva, e essa circunstância doía mais, naquele momento, de um modo objectivo e material, do que a dor de que ia morrer, agora secundária. Como se naquele momento fosse mais importante comer um pão do que ser imortal.
Gonçalo M. Tavares - Jerusalém

# 17



Lembro-me de por aqueles dias ter reparado num título do jornal que falava da morte à navalhada de um empresário madrileno, e de ter mudado rapidamente de página sem ler o texto completo, precisamente por causa da ilustração da notícia: a fotografia de um homem estendido no chão no meio da rua, na calçada, sem casaco nem gravata nem camisa, ou com ela aberta e com as fraldas de fora, enquanto os da Emergência Médica Municipal tentavam reanimá-lo, salvá-lo, com um charco de sangue à sua volta e aquela camisa branca empapada e manchada, ou foi o que imaginei pelo que me pareceu ver. Pelo ângulo adoptado não se lhe via bem a cara e, fosse como fosse, não me detive a olhar para ela, detesto esta mania actual da imprensa de não poupar ao leitor ou ao espectador as imagens mais brutais - ou será que são estes que as pedem, como seres globalmente transtornados; mas ninguém pede nunca mais que aquilo que já conhece e lhe foi dado - como se a descrição com palavras não bastasse e sem o mínimo respeito pelo indivíduo brutalizado, que já não pode defender-se nem preservar-se dos olhares a que a sua consciência desperta jamais se teria sujeitado, tal como não se teria exposto diante de desconhecidos ou conhecidos de roupão de banho ou de pijama, por não se julgar apresentável.
E como fotografar um homem morto ou agonizante, e mais ainda se por violência, me parece um abuso e a máxima falta de respeito por quem acaba de se transformar numa vítima ou num cadáver - se ainda se pode vê-lo é como se não tivesse morrido de todo ou não fosse inteiramente passado, e então é preciso que o deixem morrer de verdade e o deixem sair do tempo sem testemunhas importunas e sem público - também não estava disposta a colaborar com esse costume que nos é imposto, não me apetece olhar o que nos convidam a olhar ou quase nos obrigam, e a somar os meus olhos curiosos e horrorizados aos de centenas de milhar de outros cujas cabeças estarão pensando enquanto observam, com uma espécie de fascínio reprimido ou de seguro alívio; "Não sou eu, é outro este que tenho aqui à minha frente. Não sou eu porque lhe estou a ver a cara, que não é a minha. Leio o seu nome na imprensa e também não é o meu, não coincide, não me chamo assim. Calhou a outro, que terá feito ele, em que enredos ou dívidas se terá metido ou que prejuízos terríveis terá causado para o terem cosido à navalhada. Eu cá não me meto em nada, nem julgo ter inimigos, eu abstenho-me. Ou então meto-me e faço das minhas, mas não me apanharam. Por sorte é outro e não eu o morto que aqui nos é mostrado e de quem se fala, portanto estou mais a salvo que ontem, ontem escapei. Em compensação, caçaram este pobre diabo."

(...)

Depois a notícia desaparecera por completo dos jornais, como actualmente costuma acontecer com todas: as pessoas não querem saber porque é que alguma coisa aconteceu, só que aconteceu e que o mundo está cheio de imprudências, perigos, ameaças e má sorte que roçam por nós e em contrapartida apanham e matam os nossos semelhantes descuidados, ou porventura não eleitos. Convive-se sem problemas com mil mistérios por resolver que nos ocupam durante dez minutos de manhã e que depois se esquecem sem nos deixar inquietação nem rasto. É preciso não aprofundar nada nem demorar muito tempo em qualquer facto ou história que nos desvie a atenção de uma coisa para outra e que nos reitere as desgraças alheias, como se depois de cada uma pensássemos: "Olha, que horror. E pronto. De que outros horrores nos teremos livrado? Precisamos todos os dias de nos sentir sobreviventes e imortais por contraste, e assim, contem-nos atrocidades diferentes, porque as de ontem já as gastámos".


Javier Marias - Os enamoramentos

# 16


Mylia morava no primeiro andar do número 77 da Rua Moltke. Sentada numa cadeira desconfortável pensava nas palavras fundamentais da sua vida. Dor, pensou, dor era uma palavra essencial.
Havia sido operada uma vez, depois outra, quatro vezes operada. E agora aquilo. Aquele ruído no centro do corpo, no miolo. Estar doente era uma forma de exercitar a resistência à dor ou a apetência para se aproximar de um deus qualquer. Mylia murmurou: a igreja está fechada de noite.
Quatro da manhã do dia 29 de Maio, e Mylia não consegue dormir. A dor constante vinda do estômago, ou talvez mais de baixo, de onde vem exactamente a dor larga, que não pertence a um ponto? Talvez da parte de baixo do estômago, do ventre. O certo é que eram quatro da manhã e ainda não descansara um minuto. Fechar os olhos quando se tem medo de morrer?
Levantou-se. Mylia era uma mulher magra, mas forte. Não utilizava os dedos para ninharias. (Muitas vezes repetia a frase: não utilizar os dedos para ninharias.) Concentrava-se; sabia que tinha poucos anos de vida; a doença veio: ficamos juntas uns anos, depois ela permanece e eu parto. Pois bem, havia que concentrar a energia que existe nos dias ou que existe num corpo e se dirige aos dias, concentrá-la - à energia - como a um rolo de carne, estar pronta para agir. Dispensando ninharias. Os dedos devem tocar só no que é espesso, no que é fundamental; o urgente tem de coincidir com o essencial, com o que altera de alto a baixo. Como uma pancada forte no momento em que a recebemos: todas as coisas do dia mais insignificante se devem aproximar desse momento em que se recebe uma pancada forte. Mylia olhava-se ao espelho: estou viva e já dei um passo mau. Estar doente é ter dado um passo mau, um passo diabólico, murmurou Mylia. Uma doença que altera de alto a baixo.
Mas nesse dia, às quatro da manhã, decidira sair de casa. De noite a dor desce sobre o corpo de modo distinto. Como um concentrado químico, uma substância que lentamente desliza por um declive mínimo que os olhos mal conseguem perceber. Entre o dia e a noite a superfície não é plana. Um ligeiro declive.
Concentrada a dor nesse sítio largo que não era um ponto - entre o baixo estômago e o ventre - Mylia estava na rua à procura de uma igreja.
Surpreendido, um vagabundo diz que não sabe. Uma igreja?, pergunta.
É de noite, diz o homem, podem roubá-la. Não deve procurar uma igreja, mas sim a polícia para a proteger. Onde quer ir a estas horas? Eu podia roubá-la, senhora.
Mylia sorriu, afastou-se. A dor não a deixava concentrar-se num diálogo.
Não quero a polícia, quero uma igreja. Sabe se estão fechadas a esta hora?
(...)
- A igreja está fechada. Sabe que horas são? Quase cinco da manhã. E não deveria estar aqui. De noite esta zona é má, é uma zona perigosa.
Mylia sentiu vontade de rir em frente ao bom homem. Zona má porque perigosa! Ela que vem com a doença, uma doença que já está dentro e a vai matar num ano, dois, não mais. Ela que está com a morte fechada num sítio de onde já não sai; ela quer precisamente o perigo, aquilo que ainda a excite, que ainda revele nela energia suplementar. Esteve à beira de dizer ao homem, certamente trabalhador na igreja em ofícios menores, esteve tentada a dizer: se esta zona é perigosa, não é uma zona má. Aqui se poderá construir.

Gonçalo M. Tavares - Jerusalém

sexta-feira, 5 de julho de 2013

# 15


(...) só quando alguém morre é que pensamos que já se fez tarde para qualquer coisa, para tudo - e ainda mais para o esperarmos - e nos limitamos a dar-lhe baixa. Aos nossos próximos também, ainda que nos custe muito mais e os choremos, e que a sua imagem nos acompanhe em espírito enquanto andamos pelas ruas e em casa, e embora acreditemos durante muito tempo que havemos de nos acostumar. Mas sabemos desde o princípio - desde que morrem - que já não devemos contar com eles, nem sequer para as coisas mais insignificantes, para um vulgar telefonema ou para uma pergunta pateta ("Deixei aí as chaves do carro? A que horas saíam hoje as crianças?"), para nada. Nada é nada. Na realidade é incompreensível, porque pressupõe que temos certezas e isso é avesso à nossa natureza: a de que alguém já não tornará a chegar, nem a dizer, já nunca mais dará um passo - nem para se aproximar nem para se afastar - não mais olhará para nós nem desviará a vista. Não sei como resistimos a isto, nem como recuperamos. Não sei como nos esquecemos de vez em quando, quando já passou o tempo e nos afastou deles, que ficaram imóveis.


Javier Marias - Os enamoramentos

# 14


Hoje, como nunca aconteceu antes: os mendigos, os vencidos, as mulheres com sacos de plástico, os vadios e os bêbedos. Abrangem uma larga escala, desde os que estão simplesmente despojados de tudo aos desgraçadamente destruídos. Para onde quer que nos voltemos, eles estão lá, tanto nos bairros bons, como nos maus.
Alguns pedem com uma expressão de orgulho: "Dê-me algum dinheiro", parecem dizer, "e em breve estarei outra vez no vosso grupo social, a vosso lado, andando para trás e para diante nas minhas ocupações diárias". Outros, deixaram de ter esperança de, alguma vez, abandonarem aquela vida de miséria. Estão estendidos nos pavimentos, de chapéu ou boné enfiado na cabeça, sem se darem sequer ao trabalho de olhar para cima, para os transeuntes, demasiado derrotados para agradecerem àqueles que lhes atiram uma moeda. Há ainda outros que tentam trabalhar, para merecerem o dinheiro que lhes dão: os cegos, que vendem lápis, os bêbedos que lavam o vidro dianteiro dos automóveis. Alguns contam histórias, que são, por vezes, o relato trágico das suas próprias vidas, como se desejassem dar aos seus benfeitores qualquer coisa a troco da sua bondade, mesmo que sejam palavras.
Outros são, de facto, talentosos. Por exemplo, o negro idoso que hoje dançava sapateado enquanto fazia malabarismos com alguns cigarros e que ainda tinha alguma dignidade, pertencera obviamente a uma companhia de variedades. Envergava um fato púrpura, uma camisa verde e uma gravata amarela, e uma boca com um sorriso fixo, vagamente recordado, dos seus tempos de palco. Há também os artistas que desenham a giz nos pavimentos, além de músicas, saxofonistas, guitarristas com os seus instrumentos eléctricos, violinistas. Ocasionalmente, podemos mesmo encontrar um génio, como aconteceu hoje comigo. Um tocador de clarinete, sem idade definida, usando um chapéu que lhe obscurecia o rosto, sentado, de pernas cruzadas, no pavimento, como se fosse um encantador de serpentes. Diante dele, estavam dois macacos mal tratados, um deles com uma pandeireta e o outro com um tambor. Com um deles a abanar a pandeireta e o outro a bater no tambor, provocando um som estranho e sincopado, o homem improvisava pequenas variações no clarinete, com o corpo a balançar, rígido, para trás e para a frente, energicamente mimando o ritmo dos macacos. Ele tocava cheio de energia e de talento, embelezando o trecho musical com sons animados e de execução variada, com uma sucessão de tons e semitons da escala diatónica menor, como se estivesse contente por estar ali com os seus amigos mecânicos, fechado no universo que tinha criado, sem levantar uma só vez o olhar. A música continuava interminavelmente, sempre a mesma. Contudo, quanto mais a escutava, mais difícil se tornava, para mim, afastar-me dela. Para penetrar naquela música, ser arrastado para o círculo da sua repetição...talvez aquilo seja um lugar onde, por fim, uma pessoa gostasse de desaparecer...
Mas os pedintes e os artistas constituem apenas uma pequena parte da população de vagabundos. Aqueles, são a aristocracia, a ética dos vencidos. Mas muito mais numerosos são os que nada têm para fazer, nem um sítio para onde ir. Muitos são alcoólicos, mas este termo não presta justiça à devastação que eles representam, carcaças de desespero, vestidos de trapos, de rostos feridos e a sangrar, arrastam-se pelas ruas como se arrastassem correntes. Adormecidos nos vãos das escadas, rastejando, de maneira automaticamente louca, no meio do tráfego, caindo nos passeios, parecendo estar em todos os lugares no momento em que os procuram. Alguns morrerão de fome, outros sucumbirão vítimas das intempéries, e ainda muitos outros apanharão pancada ou serão queimados ou torturados.
Por cada alma perdida neste inferno especial, há algumas outras encerradas na sua loucura, impossibilitadas de sair para o mundo que fica no limiar dos seus corpos. Mesmo que pareçam existir, não podem ser contadas como estando presentes. O homem, por exemplo, que anda por toda a parte com um par de baquetas de tambor, batendo com elas no pavimento com um movimento desvairado, sem sentido, rítmico, inclinando-se para a frente de modo desajeitado enquanto caminha ao longo da rua, batendo incessantemente no cimento. Talvez ele pense que está a fazer um trabalho importante. Talvez se ele não fizesse o que faz, a cidade desmoronar-se-ia. Talvez a lua saísse da sua órbita e caísse na Terra. Há ainda os que falam sozinhos, que murmuram, gritam, praguejam, emitem grunhidos, que contam histórias a si mesmo como se estivessem a contá-las a outras pessoas, lembro-me de um homem que vi hoje, sentado como se fosse um monte de lixo, em frente da Grand Central, com a multidão a passar por ele, enquanto gritava, cheio de pânico: "Terceiros-fuzileiros...a comer abelhas...as abelhas que saem rastejantes da minha boca!" Ou a mulher gritando para um companheiro invisível. "E se eu não quiser fazer? Qual é a merda que acontece se eu não quiser?!"
Há as mulheres com sacos de plástico e os homens com caixas de cartão, transportando os seus haveres de um lado para o outro, caminhando sem parar, como se fosse importante o sítio para onde vão. Há o homem embrulhado numa bandeira norte-americana. Há a mulher com uma máscara carnavalesca tapando-lhe a cara. Há o homem com um sobretudo em farrapos, com os sapatos embrulhados em trapos, transportando uma camisa impecavelmente engomada, pendurada num cabide e ainda no invólucro de plástico da lavandaria. Há o homem vestido com um fato normalmente usado pelos homens de negócios, descalço e com um capacete de jogador de futebol na cabeça. Há a mulher cujas vestes estão cobertas, da cabeça aos pés, com autocolantes das campanhas presidenciais. Há o homem que caminha com a cara tapada com as mãos, chorando histericamente e repetindo sem cessar: "Não, não, não. Ele está morto. Não está morto. Não, não, não. Ele está morto. Ele não está morto." 

Paul Auster - Cidade de Vidro - Trilogia de Nova Iorque