quinta-feira, 31 de julho de 2014

# 161



Que é da maioria das existências senão uma série de episódios incompletos? Trabalhamos nas trevas, fazemos o que nos é possível, damos o que temos. A nossa dúvida é a nossa paixão, e a nossa paixão é a nossa cruz...O desejo de conhecer o fim é que nos faz crer em Deus, ou na feitiçaria, em qualquer coisa, em suma?


Truman Capote - Outras Vozes, Outros Lugares

# 160



Joel avançava em passos cautelosos, mantendo o equilíbrio com a sua espada e evitando olhar para a água vertiginosa e profunda que lhe corria pouco abaixo dos pés; fixava a vista na margem oposta onde, na argila vermelha e banhada de sol, se estendiam aboboreiras verdes e prometedoras. E, de repente, teve a sensação de que nunca chegaria ao outro lado, de que ficaria eternamente ali, a equilibrar-se sobre a trave, às escuras e sozinho. Sentindo, porém, os passos de Idabel, lembrou-se de que havia alguém a fazer-lhe companhia.


Truman Capote - Outras Vozes, Outros Lugares

# 159



Nem sempre se chega à felicidade pelo caminho mais curto.


Truman Capote - Outras Vozes, Outros Lugares

# 158



Os papagaios amestrados dizem mais verdades que a maioria das pessoas.


Truman Capote - Outras Vozes, Outros Lugares

# 157



Incutiram-me a ideia de que não estava obrigada a brincar sozinha, pois havia outros seres pequeninos que habitavam nas flores. Desfolhei muitas pétalas, mas os lilases são lilases, e nas rosas em que busquei, não existia ninguém.

Truman Capote - Outras Vozes, Outros Lugares

# 156



(...) os mortos estão tão sós como os vivos?


Truman Capote - Outras Vozes, Outros Lugares

# 155



Para a maior parte das pessoas, descobrir alguém é como descobrirem-se a si mesmas. Vêem-se reflectidas nos olhos dos demais.


Truman Capote - Outras Vozes, Outros Lugares

domingo, 20 de julho de 2014

# 154



Durante anos (na verdade, durante toda a vida), andei a desmontar-me e a voltar a montar-me de outra maneira. Fui fazendo isto enquanto crescia, enquanto as minhas pernas e os meus braços se alongavam e me transformava num adolescente. Não desmontava, pois, uma matéria inerte, uma natureza morta, mas sim um processo. Quando se desmonta um processo, ao montá-lo de novo, as peças mudaram de tamanho.

Juan José Millás - O Mundo

# 153



(...) eu não me via a mim nem sequer no espelho. (...) Olhava para mim no espelho e fazia caretas. "Fazer caretas" era uma maneira de procurar uma identidade.

Juan José Millás - O Mundo

# 152



Entre muitas outras espécies de monstros, têm medo deste ser insignificante que sou eu, reconhece George.
Na opinião de George, Mr. Strunk tenta classificá-lo com uma palavra. Esquisito, rosna ele, sem dúvida. Mas como afinal estamos no ano de mil novecentos e sessenta e dois, talvez se possa esperar que acrescente: não me interessa o que ele faz desde que se mantenha longe de mim. Até os psicólogos estão em desacordo quanto às conclusões a que é possível chegar-se acerca dos Mr. Strunk deste mundo, a partir de um tal comentário. (...)
Mas George tem a certeza de que Mrs. Strunk se permite discordar ligeiramente do marido, pois está treinada na nova tolerância, na técnica de aniquilamento pela brandura. Tal como vem no seu livro de psicologia, a campainha e a vela já não são necessárias. Ao lê-lo no seu doce cantarolar, ela exorciza aquilo que em George é indizível. Não há motivo para aversão, acentua, nem para condenação. Nada existe aqui que seja intencionalmente depravado. Tudo se deve à hereditariedade, ao ambiente dos primeiros anos de vida (aquelas mães possessivas, aquelas escolas inglesas em que se praticava a segregação dos sexos, que vergonha!), ao desenvolvimento reprimido na puberdade, e/ou às glândulas. Aqui temos um ser desajustado, privado para sempre das coisas melhores da vida, que devemos lamentar e não acusar. Alguns casos, quando detectados a tempo, conseguem responder à terapia. Quanto aos restantes...ah, é tão triste, em especial quando acontece com pessoas que valem verdadeiramente a pena, pessoas que teriam tanto a dar. (Apesar disso, quando são génios, as suas obras primas saem invariavelmente desvirtuadas.) Portanto, vamos ser compreensivos e lembrarmo-nos de que afinal os Gregos existiram (embora fosse um pouco diferente, pois esses, mais do que neuróticos, eram pagãos). Vamos mesmo ao ponto de afirmar que este tipo de relação pode, por vezes, quase atingir a beleza, particularmente se uma das partes já morreu, ou melhor ainda, ambas.
Como Mrs. Strunk gostaria de lamentar a morte de Jim! Mas, ah, ela não sabe de nada; nenhum deles sabe. O acontecimento deu-se no Ohio e os jornais não trouxeram a notícia. George limitou-se a espalhar na zona que os familiares de Jim, que já estão a ficar entrados na idade, tentaram convencê-lo a voltar para casa e a viver com eles; e que agora, em consequência desta sua recente visita, ele ficará no Leste para sempre. O que é uma grande verdade. (...)
Mas o seu livro está errado, Mrs. Strunk, diz George, quando afirma que Jim é o substituto que eu encontrei para um filho, um irmão mais novo, um marido, uma esposa. Jim não era o substituto de nada. E, desculpem-me que o diga, não existe substituto de Jim em lado nenhum.
O seu exorcismo falhou, cara Mrs. Strunk, diz George, de cócoras na casa de banho e espreitando do seu refúgio, ao vê-la despejar o saco de pó do aspirador no contentor do lixo. O indizível continua aqui; precisamente junto de si.


Christopher Isherwood - Um Homem Singular

# 151



Há pouco tempo li em qualquer sítio que para entender uma experiência é preciso transformá-la primeiro numa vivência. De outro modo, fica aí, enquistada, como um tumor que todos os dias, quando nos despimos, observamos com perplexidade, sem saber o que devemos fazer por ele ou ele por nós.

Juan José Millás - O Mundo

# 150



Às vezes sonho com uma escrita que me afunde e que me eleve, que me adoeça e que me cure, que me mate e me dê a vida.

Juan José Millás - O Mundo

# 149



Tenho a meu respeito a ideia, possivelmente absurda, de que me salvei. De quê? Do inferno, antes de mais nada. A ideia de salvação, na nossa cultura (no nosso mundo), está mais associada a evitar o inferno do que a conquistar o céu. Em que teria consistido o inferno? Em ser um indivíduo opaco, intransitivo, sem interesses culturais, sem inquietudes filosóficas, sem ambições literárias, talvez sem tendências burguesas.


Juan José Millás - O Mundo

# 148



Concebo a escrita como um trabalho manual. Cada frase é um circuito eléctrico. Quando se dá ao interruptor, a frase tem de se acender. Um circuito não precisa de ser belo, mas sim eficaz. A sua beleza reside na sua eficácia.


Juan José Millás - O Mundo

# 147



O medo dos mais velhos produz pavor nos mais pequenos.

Juan José Millás - O Mundo

# 146



As bocas dos adultos dizem coisas que os seus olhos desmentem.

Juan José Millás - O Mundo

sábado, 19 de julho de 2014

# 145



(...) porque se assemelham as suas vozes às dos rapazes chamando uns pelos outros, num tom cada vez mais sonoro e ousado, quando andam a explorar uma gruta escura e desconhecida? Saberão que têm medo? Não. Mas a verdade é que estão cheios de medo.
O que temem?
Temem o que sabem estar algures na escuridão que os envolve, o que a cada momento pode aparecer à luz indesmentível das lanternas, explícito, e que nunca mais será ignorado. O inimigo que não cabe nas suas estatísticas, a górgona que recusa a sua cirurgia plástica, o vampiro que bebe sangue em sorvos alarves, a besta malcheirosa que não usa os seus desodorizantes, o indizível que, apesar de todos os pedidos de silêncio, insiste em dizer como se chama.


Christopher Isherwood - Um Homem Singular

# 144



Acordei a sentir que a angústia abria caminho entre os meus ossos e subia pelas minhas veias até a minha pele se abrir. Foi um horror esse despertar. Para o afugentar quanto antes da minha mente, fui buscar o Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa. Pareceu-me que, por muito duro que fosse o fragmento que encontrasse ao acaso ao abrir o angustiante diário de Pessoa, sempre seria inferior em dureza ao horror com que acordei. Sempre me dei bem com este sistema de viajar pela angústia dos outros para diminuir a intensidade da minha.


Enrique Vila-Matas - Bartleby & Companhia

domingo, 13 de julho de 2014

# 143



As pessoas traziam-lhe também os seus problemas pessoais, como se, do seu leito de morte, pudessem esperar algo próximo da informação divina.
A porta do quarto de Ravelstein estava aberta e eu pude ver o cabelo comprido do nosso amigo Battle caído sobre os seus ombros montanhosos, e as suas belas botas até ao tornozelo. O rosto dele não estava à minha frente, mas a mulher estava obviamente a chorar. (...)
Depois de se irem embora, Ravelstein contou-me (acocorado na cama, como que divertindo-se interiormente) que o objectivo da visita era pedir-lhe conselho.
- Acerca de quê?
- Vieram falar-me dos seus planos de suicídio. Pediram desculpa por me incomodar. Ainda por cima numa tal altura...
- Eu diria o mesmo...
- Não sejas tão duro com eles, Chick. Nos idosos são comuns as fantasias de suicídio. Acho que eles estavam a falar a sério.
- Eles julgaram que estavam a falar a sério.
- Porque eu estou a morrer ocorreu-me o mesmo, naturalmente. Esta é uma linda ocasião para me virem com os seus problemas. Eles puseram a questão no estilo "e se". Será que eu achava que, em abstracto, neste momento das suas vidas e tudo o mais, seria uma boa ideia se?...
- Um pacto suicida?
- Battle explanou o argumento e ela completou-o e acrescentou o comentário sensato. Disseram que eu era a única pessoa em quem confiavam o suficiente e que não se riria deles.
- Portanto, vens ter com um homem que preferia não ter de morrer e apresentas-lhe o teu plano de suicídio.
(...)
- A queixa é de que estão a ficar velhos. Todas as pessoas educadas cometem o mesmo erro, pensam que a natureza e a solidão são veneno puro - disse Ravelstein. (...)
- O que lhes disseste, então?
(...)
-Eu disse-lhes que tinham tido um grande romance de amor. (...) Os Battles contam comigo para sintetizar as coisas, e assim cumpri o que esperavam de mim e contei-lhes a sua própria história. Entre milhões ou centenas de milhões de pessoas, eles, apenas eles, tinham acertado na lotaria. Tiveram uma grande história de amor e décadas de felicidade sem esforço. Como podiam suportar a ideia de vulgarizarem isso com um suicídio?...Eu podia ver que estava a dizer o que a senhora Battle desejava ouvir. Ela queria que eu defendesse a causa de continuarem vivos.
- Mas o Battle não estava completamente satisfeito, não é assim?
- Isso mesmo, Chick. Ele queria uma discussão acerca do suicídio e do niilismo. Já por várias vezes pensei que as fantasias de suicídio e as fantasias de assassínio se equilibram mutuamente na economia mental das pessoas civilizadas.


Saul Bellow - Ravelstein

# 142



Criei-me entre livros, fazendo amigos invisíveis em páginas que se desfaziam em pó e cujo cheiro ainda conservo nas mãos.


Carlos Ruiz Zafón - A Sombra do Vento

sábado, 12 de julho de 2014

# 141



Ravelstein estava disposto a contar-me tudo. Agora, por que razão se preocupava ele em contar-me tais coisas, este judeu enorme de Dayton, Ohio? Ele era seropositivo, e estava a morrer de complicações afins. Enfraquecido, tornara-se o hospedeiro de uma lista interminável de infecções. Ainda assim, insistia em explicar-me uma e outra vez mais o que era o amor - a necessidade, a consciência da imperfeição, a saudade do todo, e como todas as dores de Eros viviam juntas com os prazeres mais extáticos.
Esta é uma ocasião tão boa como qualquer outra para recordar que, pelo meu lado, sentia-me à vontade para confessar a Ravelstein o que não podia contar a mais ninguém, os meus segredos corruptos e vergonhosos, e os encobrimentos que nos desgastam as forças. A maior parte das vezes ele considerava as minhas confissões extremamente engraçadas. E mais engraçados do que tudo, eram os meus assassínios imaginários. Talvez eu lhes desse um toque cómico, sem querer. Seja como for, ele considerava-o hilariantes e dizia:
- Alguma vez leste o Dr. Theodore Reik, o famoso psicanalista boche? Ele dizia que, com um bom assassínio mental por dia, psiquiatra não havia.
Que eu fosse exigente comigo mesmo era no entanto, para Ravelstein, um sinal favorável. O autoconhecimento exige severidade e, se eu estava sempre disposto a entrar no ringue com esse monstro proteico, o eu, então havia para mim esperança. Mas eu gostaria de ir mais longe. A minha impressão era de que não conseguiríamos conhecer-nos inteiramente a menos que encontrássemos um meio de comunicar certos "incomunicáveis" - a nossa metafísica privada.


Saul Bellow - Ravelstein

domingo, 6 de julho de 2014

# 140



Bem estreito é o fio da navalha! Entre dois perigos me equilibro: de um lado ameaça-me a àvida boca do excesso, do outro a amargura da avareza que de si mesma se alimenta. E teimo na recusa de optar entre a orgia e a ascese, ainda que com isso me sujeite ao suplício em brasa dos desejos. Não sou livre nos meus actos, por isso tudo me pode ser desculpado. Mas este conhecimento não me basta. O que procuro para a vida não é uma desculpa, mas exactamente o seu contrário: é o perdão que busco. Descubro, afinal, que se não levar em conta a minha liberdade, todo o consolo é enganador, mera imagem reflectida do desespero. De facto, assim que o desespero me diz - "perde a esperança, o dia não passa de um momento de trevas entre duas noites", há uma falsa voz que me grita - "tem confiança, a noite não é mais do que um momento de trevas entre dois dias".
A humanidade, porém, não é de palavras que precisa; anseia por um consolo que ilumine. E mesmo aquele que deseje tornar-se mau - agir como se todos os actos fossem defensáveis - deve ao menos ter a bondade de notar quando o consegue.
É impossível saber quando cairá o crepúsculo, impossível enumerar todos os casos em que o consolo se fará necessário. A vida não é um problema que possa resolver-se dividindo a luz pela escuridão ou os dias pelas noites, mas sim uma viagem imprevisível entre lugares que não existem.


Stig Dagerman - A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer

# 139



Procuro o que me pode consolar como o caçador persegue a caça, atirando sem hesitar sempre que algo se mexe na floresta. Quase sempre atinjo o vazio, mas, de tempos a tempos, não deixa de me tombar aos pés uma presa. Célere, corro a apoderar-me dela, pois sei quão fugaz é o consolo, sopro de um vento que mal sobe pela árvore.
Debruço-me.
Tenho-a! Mas tenho o quê, entre estes dedos?


Stig Dagerman - A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer

# 138



O ser humano tem uma necessidade de consolo impossível de satisfazer.


Stig Dagerman  - A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer

# 137



Sem fé, ouso pensar a vida como uma errância absurda, a caminho da morte, certa. Não me coube em herança qualquer deus, nem ponto fixo sobre a terra de onde algum pudesse ver-me.


Stig Dagerman - A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer

sábado, 5 de julho de 2014

# 136



Quem teve frio em pequeno, terá frio para o resto da vida, porque o frio da infância nunca desaparece.


Juan José Millás - O Mundo


terça-feira, 1 de julho de 2014

# 135



A ambição do novo governador consistia em sanear as ruas e preservá-las de tudo quanto pudesse enodoar-lhes a honra; referia-se às ruas como a pessoas morais. De modo que, depois das prostitutas, dos vendedores que operavam nas esplanadas dos cafés, dos apanha-beatas e doutra malandragem menor, decidira atacar os pedintes, aquela raça pacífica mas tão enraizada que nenhum conquistador, antes dele, conseguira exterminar. Era como se ele quisesse varrer a areia do deserto.
Zeloso funcionário de um Estado forte, o agente da polícia avançou, por conseguinte, para o mendigo (a serena atitude deste último representava uma espécie de provocação) e começou a invectivá-lo segundo as regras de uma arte comprovada. O mendigo, porém, não reagia absolutamente nada às suas invectivas, apesar de serem para ele de muito mau agouro. Era um velhote extremamente encarquilhado, com uma barba cinzenta que lhe subia pelo rosto e cuja cabeça desaparecia debaixo de um monumental turbante. Os olhos fechados, debruados por um espesso traço negro, davam-lhe uma aparência equívoca e efeminada, a mais singular característica que podia ver-se num mendigo. Estava, além disso, vestido com andrajos multicolores de uma extrema fantasia, que melhor conviriam a um saltimbanco do que a um homem da sua condição. Aquele excêntrico velhote, antepassado de uma raça eternamente perseguida, parecia mergulhado num sono letárgico, que nem a barulheira ensurdecedora dos inúmeros veículos tentando passar pelo cruzamento conseguia perturbar. O polícia, vendo a inanidade dos insultos e ordens com que o mimoseava, acabou por lhe dar um pontapé, e logo outro, para o arrancar àquela inércia provocadora. Ia dar-lhe mais uma biqueirada quando viu o mendigo abandonar a sua pose primitiva e estatelar-se, adoptando a atitude altamente desdenhosa de uma criatura sem vida. Por momentos o polícia julgou tê-lo matado e ficou em pânico, pensando que perdera a presa. Um mendigo morto era menos que nada; constituía até um incidente capaz de o deixar sem emprego. Precisava dele vivo. Debruçou-se sobre o velho, agarrou-o pelo turbante e pôs-se a sacudi-lo como um louco, selvaticamente, como se quisesse ressuscitá-lo. Esta acção irreflectida fez jorrar o irreparável: de repente, a cabeça do mendigo saltou-lhe do pescoço com uma facilidade que parecia mágica, ficando colada ao turbante que o polícia continuava a agitar no vazio como um troféu sangrento. A multidão dos mirones, que desde há pouco se fora juntando em volta dos dois protagonistas da cena, soltou um grito horrorizado, manifestando logo a sua indignação num dilúvio de impropérios dirigidos ao agente da autoridade. Este, já sem o troféu, encarava aquela matilha uivante, que lhe chamava assassino, com o ar de uma pessoa aflita com fortes dores de barriga. Foi preciso algum tempo para aquela gente, inflamada pela carnificina matinal, perceber a marosca. Porque a verdade é que o mendigo de carne e osso não passava, afinal, de um manequim habilmente caracterizado por um artista consciencioso, e fora exposto naquele sítio respeitável com a evidente intenção de gozar com a polícia.


Albert Cossery - A Violência e o Escárnio