sábado, 30 de agosto de 2014

# 182



A cidade dos gatos e a cidade dos homens estão uma dentro da outra, mas não são a mesma cidade. Poucos gatos se lembram do tempo em que não havia diferença: as ruas e as praças dos homens eram também as ruas e as praças dos gatos, e os parques, e os pátios, e as varandas, e as fontes: vivia-se num espaço amplo e variado. Mas já há algumas gerações que os felinos domésticos são prisioneiros de uma cidade inabitável: as ruas são constantemente percorridas pelo trânsito assassino dos carros mata-gatos; em cada metro quadrado de terreno onde se abria um jardim ou uma área vazia ou as ruínas de uma velha demolição, agora levantam-se condomínios, bairros populares, arranha-céus novinhos em folha; não há cantinho que não esteja apinhado de automóveis estacionados; os pátios um a um têm vindo a ser cobertos por um telheiro e transformados em garagens ou em cinemas ou em arrecadações o em oficinas. E onde se estendia um planalto ondulante de telhados baixos, algerozes, mirantes, depósitos de água, varandas, clarabóias e tectos de chapa agora ergue-se a superelevação geral de todo e qualquer vão superelevável: desaparecem os desníveis intermédios entre o ínfimo solo das ruas e o excelso céu das mansardas; o gato das novas ninhadas bem pode procurar em vão o itinerário dos antepassados, o apoio para o suave salto do alpendre à cornija e à goteira, para o ágil trepar pelas telhas.
Mas nesta cidade vertical, nesta cidade comprimida onde todos os vazios têm a tendência para se encherem a abarrotar e cada bloco de cimento para se interpenetrar noutros blocos de cimento, abre-se uma espécie de contracidade, de cidade negativa, que consiste em fatias vazias entre muro e muro, sem as distâncias mínimas previstas pelo regulamento camarário entre duas construções, entre as traseiras de duas construções: é uma cidade de cunículos, caixas de ar, poços de luz, canais de ventilação, carreiros, pracetas internas, acessos às caves, como uma rede de canais secos num planeta de estuque e alcatrão, e é através desta rede que a rasar as paredes corre ainda o antigo povo dos gatos.


Italo Calvino - Marcovaldo

terça-feira, 26 de agosto de 2014

# 181



Pus-me à escuta do zumbido rapsódico que emite o Verão e pensei como são hesitantes estes seres humanos, como tacteiam e se atrapalham entre as suas motivações, escondendo os seus desejos, as suas esperanças e perturbações uns dos outros e de si próprios, eternas crianças que são.


John Banville - Os Infinitos

# 180



As horas, os minutos, inclusive os segundos são compreensíveis, uma vez que podem ser medidos por um relógio, mas o que é que as pessoas querem dizer quando falam num instante, um bocadinho, um momento, um segundinho? São apenas palavras, como é óbvio, porém estão suspensas sobre insondáveis profundezas. O tempo flui, ou será uma sucessão de quietudes - instantes - movendo-se tão velozmente que nos parece que se unem numa onda sem quebras? Ou haverá apenas uma grande quietude, estendendo-se em todos os sentidos, em todas as direcções, através da qual nos movemos como nadadores, enfrentando um mar infinito e indiferente? E porque é que varia? Porque é que o tempo de uma dor de dentes é tão diferente do tempo em que se está a comer um rebuçado, um dos muitos rebuçados que com o tempo causarão mais uma cárie? Existem luzes no céu, neste momento, que partiram das suas fontes há um bilião de anos. Mas existem luzes? Não, apenas luz, fluindo incessantemente, movendo-se, a cada instante. 
Tudo se funde nas margens, tudo se infiltra em tudo. Nada é separado.


John Banville - Os Infinitos

sábado, 16 de agosto de 2014

# 179



- A tua casa - disse Abdel Al - a tua casa, ó Si Khalil, não passa de um monte de pedras e de lama.
Esta afirmação, lançada com voz medida e tranquila, parou o tumulto, por um instante. Si Khalil parecia consternado.
- Vê-se bem - respondeu ele imediatamente - que não passas de um carroceiro que ignora o valor das coisas. A casa que tu vês aqui, ó homem, vale vários milhares de libras.
- Nem milhares de milésimos - ripostou Mabrouka.
Abdel Al fê-la calar-se.
- Queria dizer, ó Si Khalil, que a tua casa somos nós e que, sem nós, ela não vale absolutamente nada.
- Estás sob a influência do haxixe, ó homem. Dizes palavras vazias.
- Tu é que finges não as compreender - disse Abdel Al -, mas, ainda assim, vou-te explicar. Ouve-me. Esta casa, que tu dizes valer vários milhares de libras, para que é que te serviria, diz-me, se de repente, nós a abandonássemos? Nem para latrinas! Estás a compreender-me agora?

Albert Cossery - A Casa da Morte Certa


sexta-feira, 15 de agosto de 2014

# 178



Os deprimidos não conseguem renunciar à infância - nem sequer às dores da infância.


Saul Bellow - Herzog

# 177



Estava na fase da vida em que se inicia a futura acção da hereditariedade, as deformidades dos antepassados aparecem - uma mancha, ou rugas mais fundas, que a princípio aumentam a beleza duma mulher. A morte, a artista, muito devagar, a dar os seus primeiros toques.


Saul Bellow - Herzog

# 176



O seu coração era abertamente sensível aos horizontes amplos; às cores profundas; ao ligeiro acre iodado do Atlântico que se elevava das algas e moluscos; à areia branca, fina, pesada; mas principalmente à transparência verde ao olhar para o fundo pedregoso riscado a linhas douradas.


Saul Bellow - Herzog

# 175



É maravilhoso encontrar um amigo que connosco divida a mesma solidão.


Naguib Mahfouz - Miramar

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

# 174



Em suma, tanto naquelas leituras se enfrascou, que as noites se lhe passavam a ler, desde o sol posto até à alvorada, e os dias, desde o amanhecer até ao fim da tarde. E assim, do pouco dormir e do muito ler, se lhe secou o cérebro, de maneira que chegou a perder o juízo.
Encheu-se-lhe a fantasia de tudo que achava nos livros, assim de encantamentos, como pendências, batalhas, desafios, feridas, requebros, amores, tormentas e disparates impossíveis; e assentou-se-lhe de tal modo na imaginação o ser verdade toda aquela máquina de sonhadas invenções que lia, que para ele não havia história mais certa no mundo.


Miguel de Cervantes - D. Quixote de La Mancha

sábado, 9 de agosto de 2014

# 173



Em todas as comunidades há uma espécie de pessoas profundamente perigosas para as restantes. Não me refiro aos criminosos. Para esses temos sanções. Refiro-me aos dirigentes. Invariavelmente, os mais perigosos procuram o poder.


Saul Bellow - Herzog

# 172



Amarei a humanidade? O suficiente para a poupar, se estivesse em posição de a fazer ir pelos ares?


Saul Bellow - Herzog

# 171



As pessoas morrem - e não é metáfora - por falta de algo real que levem para casa quando termina o dia.


Saul Bellow - Herzog

# 170



Tinha de acalmar estes nervos galopando sob demasiada tensão, apagar este fogo tenebroso dentro de si. Desejava ardentemente o Atlântico - a areia, a maresia, a terapêutica da água fria. Sabia que pensaria melhor, pensamentos mais claros, depois de se banhar no oceano.


Saul Bellow - Herzog

# 169



O sol estava fechado numa garrafa vazia. A alma fechada dentro de mim.


Saul Bellow - Herzog

# 168




Umas férias darão mais força à minha vida neurótica.


Saul Bellow - Herzog 









sábado, 2 de agosto de 2014

# 167



Todas as músicas devem ser ouvidas mais de uma vez. E se o que eu te digo agora parece sem sentido, achá-lo-ás muito claro se te lembrares mais tarde.


Truman Capote - Outras Vozes, Outros Lugares

# 166



Dão-nos um ar sentimental, os espelhos, e nisto reside o seu segredo. Que tortura engenhosa seria a destruição de todos os que existem no mundo! A que recorreríamos, então, para estabelecer a nossa identidade?

Truman Capote - Outras Vozes, Outros Lugares

# 165



(...) não somos muitos os que sabemos que o amor é feito de ternura e que a ternura não significa idade, como muita gente imagina; no entanto, ainda há menos quem saiba que a felicidade no amor não consiste em concentrar todos os seus sentimentos sobre outra pessoa. Temos sempre de amar grande número de coisas, das quais o objecto amado, não é, em resumo, senão um símbolo. Os verdadeiros amados neste mundo são, aos olhos dos seus amadores, o desabrochar de um cacho de lilases, as luzes de um navio, os sinos de uma escola, uma paisagem, a lembrança de conversa de amigos, de um domingo de infância, de vozes perdidas; um fato predilecto, o Outono e as outras estações, a saudade, sim, a saudade, terra e água da nossa existência. Lista nostágica, mas haverá assunto mais nostálgico?


Truman Capote - Outras Vozes, Outros Lugares

# 164



O nosso desejo supremo é que nos amparem, que nos digam: tudo acabará por se arranjar.


Truman Capote - Outras Vozes, Outros Lugares

# 163



O meu interesse por Pepe era diferente, mais intenso do que aquele que eu tinha por Dolores. Mas incomunicável. Se estamos tão sós, meu rapaz, tão terrivelmente sós, isolados uns dos outros! Neste mundo ridículo não podemos exprimir nem manifestar a nossa ternura. Para nós a morte é mais poderosa do que a vida, impele-nos como um vento forte para as trevas, e todos os nossos gritos tomam a forma burlesca de gargalhadas, isentas de alegria. Enfartadas com todos os sobejos da solidão, as nossas entranhas acabam por rebentar, espalham sangue e fel, e nós percorremos o mundo ululando, morremos em quartos de pensão, hotéis de pesadelo, eternos lares dos nossos corações errantes.


Truman Capote - Outras Vozes, Outros Lugares

# 162



O cérebro pode receber conselhos, mas não o coração, e o amor, não sabendo geografia, não tem fronteiras. Recalca-o, esconde-o profundamente onde quiseres, ele virá sempre à superfície. E porque não? É sempre natural e belo todo o amor que desponta numa pessoa. Só os hipócritas censuram no homem o que ele ama, só os ignorantes das paixões, e os invejosos - os quais, na sua agitada limitação, confundem com tanta frequência a frecha que se dirige ao céu com a que aponta ao inferno.

Truman Capote - Outras Vozes, Outros Lugares