quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

# 212



Não há época do ano melhor e mais generosa, para o mundo da indústria e do comércio, do que o Natal e as semanas que o antecedem. Sobe das ruas o som trémulo das gaitas de foles; e as sociedades anónimas, até ontem friamente ocupadas a calcular a facturação e os dividendos, abrem o coração aos afectos e ao sorriso. Agora a única preocupação dos conselhos de administração é a de dar alegria ao próximo, mandando presentes acompanhados de votos de felicidades tanto a empresas confrades como a particulares; todas as empresas se sentem no dever de comprar um grande stock de produtos de uma segunda empresa para fazer as suas ofertas às outras empresas; as quais por sua vez compram a uma empresa outros stocks de presentes para as outras; as janelas empresariais ficam iluminadas até tarde, especialmente as dos armazéns, onde o pessoal continua em horas extraordinárias a embalar embrulhos e caixotes (...) entre os homens de negócios, as graves contendas de interesses aplacam-se e dão lugar a uma nova disputa: a de ver quem apresenta do modo mais gracioso o presente mais conspícuo e original.
Na Svab, nesse ano, o Gabinete de Relações Públicas propôs que aos clientes e fornecedores de maior cerimónia os presentes fossem enviados ao domicílio por um homem vestido de Pai Natal.
A ideia suscitou a aprovação unânime dos dirigentes. Foi comprada uma roupa de Pai Natal com o equipamento completo: barba branca, boné e capote vermelhos debruados a pele, e botas. (...) Todos estavam tocados pela atmosfera álacre e cordial que se expandia pela cidade festiva e produtora; (...)
O Chefe do Departamento de Pessoal entrou no armazém com uma barba postiça na mão: - Eh, tu! - disse para Marcovaldo - Experimenta lá como ficas com esta barba. Muito bem! O Natal és tu. Vem comigo lá acima, despacha-te! Vais ter um prémio especial se fizeres cinquenta entregas ao domicílio por dia.
Marcovaldo camuflado de Pai Natal percorreu a cidade, na sela do triciclo a motor, carregado de pacotes embrulhados em papel colorido, atado com belas fitas e adornos de raminhos de visco e de azevinho. A barba branca de algodão em rama fazia-lhe cócegas mas servia para lhe proteger a garganta do vento.
A primeira corrida fê-la a casa, porque não resistiu à tentação de fazer uma surpresa aos miúdos. "Ao princípio", pensava, "não vão reconhecer-me. Como irão rir-se depois!"
As crianças estavam a brincar na escada. Mal se voltaram. - Olá, pai.
Marcovaldo ficou decepcionado. - Eh...Não vêem como estou vestido?
- E como queres estar vestido? - disse Pietruccio - De Pai Natal, não?
- E reconheceram-me logo?
- Custa muito! Até reconhecemos o senhor Sigismondo que vinha mais bem disfarçado do que tu!
- E o cunhado da porteira!
- E o pai dos gémeos que moram aqui defronte!
- E o tio da Ernestina, aquela das tranças!
(...)
Tinha acontecido que ao Departamento de Relações Públicas de muitas firmas viera simultaneamente a mesma ideia; (...) As crianças, depois de se terem divertido as primeiras vezes a reconhecer debaixo daquela máscara os conhecidos e as pessoas do bairro, passado algum tempo já se tinham habituado e já não ligavam importância. (...)
- Pai, deixa-nos em paz, porque temos de preparar as prendas.
- Prendas para quem?
- Para um menino pobre. Temos de procurar um menino pobre e dar-lhe prendas. 
(...)
Marcovaldo esteva para dizer: "Os meninos pobres são vocês!", mas durante aquela semana persuadira-se tanto a considerar-se um habitante da Terra da Fartura (...) que não lhe pareceu boa educação falar de pobreza (...) Mas como de qualquer maneira devia fazer-se perdoar por ter vindo de mãos vazias, pensou levar Michelino consigo na sua volta de entregas. (...)
- Vamos, talvez encontre um menino pobre - disse Michelino, e saltou para o veículo, agarrando-se aos ombros do pai.
(...)
Bateu à porta de uma casa luxuosa. Veio abrir uma governanta. - Uh, mais outro pacote, quem o manda?
- A Svab deseja...
- Bem, venha cá pôr - e marchou à frente do Pai Natal por um corredor todo cheio de tapeçarias e vasos de porcelana. Michelino, de olhos muito abertos, seguia atrás do pai.
A governanta abriu uma porta de vidro. (...) Os brinquedos, espalhados num grande tapete, eram tantos como numa loja de brinquedos, sobretudo complicados mecanismos electrónicos e modelos de astronaves. No tapete, num cantinho livre, estava um menino deitado de bruços, de uns nove anos, com um ar amuado e aborrecido. Folheava um livro ilustrado, como se tudo o que estava ali à volta não lhe dissesse respeito.
(...)
Em bicos dos pés Marcovaldo e Michelino deixaram a casa.
- Pai, aquele menino é um menino pobre? - perguntou Michelino.
(...)
- Pobre? O que estás a dizer? Sabes quem é o pai dele? É o Presidente da União para o Incremento das Vendas Natalícias. O Comendador...
Interrompeu-se porque não viu Michelino. (...) Tinha desaparecido.
(...)
Em casa, foi dar com Michelino junto dos irmãos, muito sossegado.
- Diz-me lá, onde te meteste?
- Vim para casa, buscar as prendas...Sim, as prendas para aquele menino pobre...
- Eh! Quem?
- Aquele que estava tão triste...o da vivenda com a árvore de Natal...
- A ele? Mas que prendas podias dar-lhe, tu a ele?
- Oh, tínhamo-las preparado bem...três prendas, embrulhadas em papel prateado.
Intervieram os irmãos. - Fomos todos juntos levar-lhas! Se visses como ficou contente!...
- Imaginem! - disse Marcovaldo. - precisava mesmo das vossas prendas para ficar contente!
- Sim, sim, das nossas. Foi logo a correr rasgar o papel para ver o que eram...
- E o que eram?
- A primeira era um martelo: aquele martelo grande, redondo, de madeira...
- E ele?
- Saltou de alegria! Pegou nele e começou a usá-lo!
- Como?
- Partiu os brinquedos todos! E os cristais! Depois pegou na segunda prenda...
- O que era?
- Uma fisga. Havias de vê-lo, que contentamento...Quebrou as bolas de vidro todas que estavam na árvore de Natal. Depois passou aos lustres...
- Basta, basta, não quero ouvir mais! E...a terceira prenda?
- Não tínhamos mais nada para lhe oferecer, e por isso embrulhámos em papel prateado uma caixa de fósforos de cozinha. Foi a prenda que o deixou mais feliz. Dizia: "Em fósforos, nunca me deixam mexer!". Começou a acendê-los, e...
- E?
- ...Deitou fogo a tudo!
Marcovaldo levou as mãos à cabeça. - Estou arruinado!
No dia seguinte, ao apresentar-se na firma, sentia adensar-se a tempestade. Vestiu-se de Pai Natal muito à pressa, carregou na furgoneta os pacotes a entregar, já espantado por ainda ninguém lhe ter dito nada, quando viu virem direito a ele três chefes de departamento, o das Relações Públicas, o da Publicidade e o do Departamento Comercial.
(...)
- Depressa! Tem de substituir os pacotes! - disseram os chefes. A União para o Incremento das Vendas Natalícias inaugurou uma campanha para o lançamento da Prenda Destruidora. (...) Foi uma descoberta de última hora do Presidente (...) Parece que o filho dele recebeu de prenda uns artigos moderníssimos, creio que japoneses, e pela primeira vez o viu divertir-se...
- O que conta acima de tudo (...) é que a Prenda Destruidora serve para destruir artigos de todos os géneros: é o que faz falta para acelerar o ritmo dos consumos e dar uma nova vivacidade ao mercado...Tudo num tempo curtíssimo e ao alcance de uma criança...O Presidente da União viu abrir-se um novo horizonte, está no auge do entusiasmo...
- Mas esse menino - perguntou Marcovaldo com um fio de voz - destruiu realmente muita coisa?
- Fazer um cálculo, mesmo aproximado, é muito difícil, dado que a casa ficou incendiada...

(...)

Italo Calvino - Marcovaldo - [Os filhos do Pai Natal]

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

# 211



Nas origens e nas raízes do ocidente está a ira, indissociável da aurora da poesia que funda a nossa civilização: "Canta-me, ó deusa, do Peleio Aquiles a ira tenaz", diz o primeiro verso da Ilíada. O poema, que se identifica com a poesia tout court, é, antes de mais, a epopeia da cólera. Esta última surge de imediato como uma paixão negativa, portadora de desventura: diz-se que trouxe infinitos lutos aos aqueus, tendo arrastado para a morte tantos heróis e dado em pasto aos cães e aos pássaros os seus corpos. A ira de Aquiles não é a única: há a ira de Zeus pelo rapto de Helena, a de Apolo pela ofensa ao seu sacerdote Crises; a de Agamémnon, pela escrava que lhe é roubada. A cada paixão acresce o facto de ser ruinosa, mas neste caso a cólera ameaça arruinar toda uma grande colectividade, fazer perder a guerra a toda a Grécia coligada contra Tróia.
Não se trata, por outro lado, de uma cólera qualquer; a palavra grega menis - recorda Maria Graça Ciani - tem um valor sacral e indica a reacção a uma profunda e injusta ofensa à honra pública de um deus ou de um guerreiro, ou seja, a um profundo direito da pessoa, sancionado por um ritual ou por um costume vividos como uma lei religiosa. A ira é, pois, pelo menos inicialmente, justa e devida, uma resposta não só psicologicamente mas também e sobretudo eticamente motivada e necessária. Se ela entretanto é imoderada, desmesurada - a selvagem e incontrolável fúria de Aquiles - é fonte de desgraça. Nasce da fera reivindicação do próprio direito/dever, e portanto de si mesma, mas é perigosamente vizinha da loucura, da perda do autodomínio, como refere o provérbio latino ira brevis furor, a ira é um breve furor. Da cólera de Aquiles à loucura furiosa de Ajax, a passagem é breve.
Desde as origens, a civilização ocidental alerta para os perigos da ira, mas reconhece nela uma grandeza. Irritam-se heróis e deuses gregos, mas também o Senhor da Bíblia mostra a cada passo um rosto colérico: a sua cólera, que abate os soberbos e os arrogantes, é inseparável da sua justiça e é necessária à salvação do mundo. Até Jesus manifesta sem inibições a sua cólera, por exemplo quando desata a fustigar os mercadores do templo. O último dia - o dia do Senhor, da verdade - é um Dies Irae.


Claudio MagrisAlfabetos