segunda-feira, 6 de abril de 2015

# 226



o segredo das Grandes Histórias é elas não terem segredo nenhum. As Grandes Histórias são aquelas que já ouvimos e queremos voltar a ouvir. Aquelas onde podemos entrar e morar confortavelmente. Que não nos enganam com calafrios e finais acrobáticos. Que não nos surpreendem com o imprevisto. Que são tão familiares como a casa onde moramos. Ou o cheiro da pele de um amante. Sabemos como acabam, porém ouvimo-las como se não o soubéssemos. Tal como, sabendo que um dia havemos de morrer, vivemos como se não o soubéssemos. Nas Grandes Histórias sabemos quem vive, quem morre, quem encontra o amor e quem não encontra. E contudo, queremos saber de novo.
É esse o seu mistério e a sua magia.

Arundhati Roy - O Deus das Pequenas Coisas

# 225



- Ammu, quando se está feliz num sonho, isso conta? - perguntou Eshta.
- Isso conta?
- A felicidade - conta?
Ela sabia muito bem o que o seu filho de poupa desarranjada queria dizer. 
Porque a verdade é que só conta o que conta.
A sabedoria simples e inabalável das crianças.
Quando se come peixe num sonho, isso contava? Quer isso dizer que se comeu peixe?

Arundhati Roy - O Deus das Pequenas Coisas


# 224



Eshta pensou Dois Pensamentos e os Dois Pensamentos que pensou foram os seguintes:

(a) Tudo pode acontecer a Todos
E
(b) É melhor estar preparado

Arundhati Roy - O Deus das Pequenas Coisas



# 223



é tão fácil estilhaçar uma história. Quebrar a cadeia de pensamentos. Destruir o fragmento de um sonho transportado com tanto cuidado como se fosse uma peça de porcelana.
Deixá-lo existir, viajar com ele, como Velutha fez, é de longe a coisa mais difícil.

Arundhati Roy - O Deus das Pequenas Coisas



sexta-feira, 3 de abril de 2015

# 222



Da janela da sala de estar onde se encontrava, com o cabelo ao vento, Rahel via a chuva a bater no telhado de chapa ferrugenta daquilo que fora a fábrica de pickles da avó.
Pickles & Conservas Paraíso.
Entre a casa e o rio.
Fabricavam pickles, sumos, compotas, pó de caril e ananás enlatado. E compota de banana (ilegalmente) depois de a O.P.A. (Organização dos Produtos Alimentares) a banir porque, segundo os seus critérios, aquilo não era compota nem geleia. Demasiado líquida para geleia e demasiado espessa para compota. Uma consistência ambígua, inclassificável, diziam eles.
Segundo rezavam os seus livros.
Olhando agora para trás, parecia a Rahel que essa dificuldade da família com classificações tinha raízes muito mais fundas do que a questão da compota-geleia.
Talvez Ammu, Eshta e ela própria fossem os piores transgressores. Mas não eram os únicos. Havia também os outros. Todos eles quebraram as regras. Todos eles atravessaram território proibido. Todos eles perverteram as leis que estipulavam quem devia ser amado e quem não devia.
(...) 
tudo começou realmente na época em que as Leis do Amor foram feitas. As leis que estipulavam quem devia ser amado, e como.
E quanto.


Arundhati Roy - O Deus das Pequenas Coisas