segunda-feira, 29 de junho de 2015

# 239



tinha abandonado a vida real e só tinha a ver com palavras, um mar onde se perde e onde ele tem, no entanto, a sensação de estar numa situação de plenitude. Solidão, loucura, silêncio, liberdade.
A sua experiência só se consegue expressar através de paradoxos (...) domina-o a sensação de ser empurrado para a frente precisamente pela sua recusa em avançar. Isso dá-lhe uma grande sensação de bem-estar, melhor dizendo, de bela infelicidade.


Enrique Vila-Matas - Doutor Pasavento

# 238



pus-me a pensar na magia das despedidas radicais, no encanto das despedidas radicais dessas pessoas que tanto admiramos quando vimos a saber que foram capazes de mandar tudo para o diabo, que bateram com a porta e se foram embora, não sem antes dizer fiquem aí, seus cabrões.
Quando ouvimos dizer que alguém deixou toda a gente pendurada, nós em silêncio, com raiva contida, aprovamos esse audaz, purificador, elementar impulso. Como não haveríamos de aprovar se todos odiamos o nosso domicílio, o lar nos aborrece, ter de estar nele? Eu, pelo menos, já as tinha começado a jurar ao meu domicílio. Era um entusiasta da Teoria de los abandonos, um poema de Philip Larkin: "Todos odiamos a nossa casinha, / ter de viver nela: / eu detesto o meu quarto, / os seus trastes especialmente escolhidos / a bondade dos livros e a cama / e a minha vida perfeitamente em ordem."


Enrique Vila-Matas - Doutor Pasavento

sábado, 27 de junho de 2015

# 237



Um rasto de mortos. "Todos estes mortos à nossa volta, onde sepultá-los, senão na linguagem?", pergunta Adónis, o poeta sírio-libanês


Enrique Vila-Matas - Doutor Pasavento

# 236



embora eu sempre tenha sentido uma grande atracção por esse tipo de viagens que fazemos sem uma ideia de retorno e que nos abrem portas e que podem mudar as nossas vidas, muito maior ainda tinha sido sempre a minha atracção por esse tipo de viagens ou pequenas excursões, sem aventura nem imprevistos, que em poucas horas nos conduzem de novo ao nosso porto, todas essas viagens que outrora nos levavam até ao muro da casa familiar nos verões da infância e agora a nossa casa dos dias actuais.

Enrique Vila-Matas - Doutor Pasavento

# 235



Não sei se toda a gente sabe que, quando ficamos sozinhos muito tempo, descobrem-se cada vez mais coisas em todo o lado onde para os outros não existe nada.

Enrique Vila-Matas - Doutor Pasavento

# 234



se olharmos durante muito tempo para o abismo, o abismo acabará por nos observar também.


Enrique Vila-Matas - Doutor Pasavento

# 233



eu sou adepto da tenebrosa linha de sombra destes tempos em que tudo finalmente se nos tornou incompreensível e, quando nos falam do mundo, já não sabemos do que é que se trata e sentimos que tudo isso podia ser precisamente o começo de algo que poderia manter-nos muito entretidos, talvez obcecados, durante um longo período de tempo, embora, isso sim, connosco sempre estupefactos, sem entender nada, nem saber do que se trata todo este maldito imbróglio da vida, a morte e outras bagatelas, sem uma única ideia válida para compreender o mundo


Enrique Vila-Matas - Doutor Pasavento

# 232



E eu sou parecido com quem? Seguramente que tenho algo de equilibrista que, numa alameda do fim do mundo, se passeia pela linha do horizonte. E creio que me movo como um explorador que avança no vazio. Não sei, trabalho nas trevas e é tudo misterioso. Só sei que me fascina escrever sobre o mistério de que exista o mistério da existência do mundo, porque adoro a aventura que há em todo o texto que pomos em andamento, porque adoro o abismo, o próprio mistério, e adoro, além disso, essa linha de sombra que, ao cruzá-la, vai parar ao território do desconhecido, um espaço onde de repente tudo nos é muito estranho, sobretudo quando vemos, como se estivéssemos no estado infantil da linguagem, nos toca voltar a aprender tudo, embora com a diferença de que, em criança, nos parecia que podíamos estudar e entender tudo, enquanto que na idade da linha de sombra vemos que o bosque das nossas dúvidas nunca se tornará nítido e que, além disso, o que a partir de então iremos encontrar serão apenas sombras e treva e muitas perguntas.
Então, quando nos acontece uma coisa destas, eu creio que o melhor que podemos fazer é continuar em frente, nem que seja só para ter a impressão de sermos empurrados para a frente pela nossa própria recusa em avançar.

Enrique Vila-Matas - Doutor Pasavento

sábado, 20 de junho de 2015

# 231


Nós combatemos a nossa superficialidade, a nossa mesquinhez, para tentarmos chegar aos outros sem esperanças utópicas, sem uma carga de preconceitos ou de expectativas ou de arrogância, o mais desarmados possível, sem canhões, sem metralhadoras, sem armaduras de aço com dez centímetros de espessura; aproximamo-nos deles de peito aberto, na ponta dos dez dedos dos pés, em vez de estraçalhar tudo com as nossas pás de catterpillar, aceitamo-los de mente aberta, como iguais, de homem para homem, como se costuma dizer, e, contudo, nunca os percebemos, percebemos tudo ao contrário.
Mais vale ter um cérebro de tanque de guerra. Percebemos tudo ao contrário, antes mesmo de estarmos com eles, no momento em que antecipamos o nosso encontro com eles; percebemos tudo ao contrário quando estamos com eles; e, depois, vamos para casa e contamos a outros o nosso encontro e continuamos a perceber tudo ao contrário.
Como, com eles, acontece a mesma coisa em relação a nós, na realidade tudo é uma ilusão sem qualquer percepção, uma espantosa farsa de incompreensão. E, contudo, que fazer com esta coisa terrivelmente significativa que são os outros, que é esvaziada do significado que pensamos ter e que, afinal, adquire um significado lúdico; estaremos todos tão mal preparados para conseguirmos ver as acções intímas e os objectivos secretos de cada um de nós? Será que devemos todos fecharmo-nos e mantermo-nos enclausurados como fazem os escritores solitários, numa cela à prova de som, evocando as pessoas através das palavras e, depois, afirmar que essas evocações estão mais próximas da realidade do que as pessoas reais que destroçamos com a nossa ignorância, dia após dia? Mantém-se o facto de que o compreender as pessoas não tem nada a ver com a vida. O não as compreender é que é a vida, não compreender as pessoas, não as compreender, não as compreender, e depois, depois de muito repensar, voltar a não as compreender. É assim que sabemos que estamos vivos: não compreendemos. Talvez o melhor fosse não ligar ao facto de nos enganarmos ou não sobre as pessoas e deixar andar. Se conseguirem fazer isso - estão com sorte.

Philip Roth - Pastoral Americana

domingo, 14 de junho de 2015

# 230



Paciente: A noite passada sonhei que Jennifer Lopez e Angelina Jolie estavam na minha cama e que fizemos amos os três a noite inteira.
Psiquiatra: Obviamente, tem um desejo profundamente enraizado de dormir com a sua mãe.
Paciente: O quê?! Nenhuma dessas mulheres se parece remotamente com a minha mãe.
Psiquiatra: Aha! Uma formação reactiva. Está, sem dúvida, a reprimir os seus verdadeiros desejos.

A história que acabei de contar não é uma piada - na verdade, é a forma como alguns freudianos raciocinam. E o problema do seu raciocínio é que não existe um conjunto concebível de circunstâncias concretas que refutem a sua teoria edipiana. Na crítica que fez à lógica indutiva, o filósofo do século XX, Karl Popper, argumentou que para uma teoria ser válida tem de haver algumas circunstâncias possíveis cuja falsidade possa ser demonstrada. Na pseudopiada acima, não existem circunstâncias que o terapeuta freudiano admitirá como prova.
Aqui têm uma piada verdadeira que foca a opinião de Popper ainda mais claramente:

Dois homens estão a fazer o pequeno-almoço. Um deles barra a torrada com manteiga e diz:
- Já reparaste que quando deixamos cair uma torrada, ela cai sempre com o lado da manteiga para baixo?
O segundo tipo diz:
- Não, aposto que só parece assim porque é horrível limpar a gordura quando a torrada cai com a manteiga para baixo.
O primeiro tipo diz:
- Ah, sim? Repara nisto. - Deixa cair a torrada e ela fica com o lado da manteiga voltado para cima.
- Estás a ver? Eu bem te disse - declara o segundo tipo.
- Oh, já sei o que aconteceu - replica o primeiro. - Pus a manteiga do lado errado!

Para este tipo, nenhuma prova falsificará a sua teoria.


Thomas Cathcart / Daniel Klein - Platão e um Ornitorrinco entram num Bar

quinta-feira, 11 de junho de 2015

# 229



ABERRAÇÃO, n. Qualquer desvio de outra pessoa relativamente aos nossos hábitos de pensamento, quando ainda não se lhe pode chamar demência.


Ambrose Bierce - Dicionário do Diabo