quinta-feira, 29 de junho de 2017

# 335



infância perdida, próxima, tão próxima!


Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 334



os peixes já não querem sair dos aquários, já quase nunca tocam o vidro com o nariz

(...)


Que maravilha que seria observar os peixes no seu aquário e de repente vê-los saltar para o ar livre, partirem como pombas. Uma esperança idiota, claro. Todos recuamos com o medo de esfregar o nariz em algo desagradável. Sobre o nariz como limite do mundo, tema de dissertação.


Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 333



a repetição até ao infinito de uma ânsia de fuga


Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 332



a desgraça é, digamos, mais tangível, quiçá porque é dela que nasce o desdobramento entre o sujeito e o objecto. Por isso é que se fixa tão bem na memória e se podem contar tão bem as catástrofes.

(...)

a felicidade pertence unicamente a uma pessoa, e a desgraça parece ser de todos.


Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 331



começaria a recriminar-se (...) a desmontar a situação peça por peça até não restar senão o mesmo de sempre, um buraco por onde soprava o tempo, um contínuo impreciso sem limites definidos.

Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 330



"Só vivendo absurdamente é que um dia se poderia romper esse absurdo infinito"


Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 329



"mas era necessário viver de outra maneira. E o que quer dizer viver de outra maneira? Talvez viver absurdamente para acabar com o absurdo, deixar-se cair em si mesmo com uma tal violência que a queda acabasse nos braços do outro. Sim, talvez o amor, mas a otherness dura-nos o que dura uma mulher, e além disso apenas no que a essa mulher diz respeito. No fundo não há otherness, apenas a agradável togetherness. É certo que já é qualquer coisa..." Amor, cerimónia ontológica, dadora de ser. Era por isso que lhe ocorria agora o que talvez lhe devesse ter ocorrido no princípio: sem se possuir a si mesmo não havia a possessão do outro, e quem é que se possuía verdadeiramente? Quem é que estava de regresso a si mesmo, da solidão absoluta que representa não contar sequer com a própria companhia, ter que enfiar-se numa sala de cinema, ou num prostíbulo, ou em casa de uns amigos, ou numa profissão absorvente, ou no casamento, para ao menos estar só-entre-os-demais? Era assim que, paradoxalmente, o cúmulo da solidão conduzia ao cúmulo do gregário, à grande ilusão da companhia alheia, ao homem só na sala dos espelhos e dos ecos. Porém, as pessoas como ele e tantos outros que se aceitavam a si mesmos (ou se rejeitavam, mas conheciam-se de perto) entravam no pior dos paradoxos, o de estar quiçá nos limites da alteridade e não poder atravessá-los.
A verdadeira alteridade feita de contactos delicados, de maravilhosos ajustes com o mundo, não se podia cumprir apenas a partir de uma parte; à mão estendida devia responder outra mão vinda de fora, do outro.


Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 328



Não é tanto que estejamos sozinhos, isso sabe-se de sobra e ponto final. Estar só é em definitivo estar só dentro de um certo plano, no qual outras solidões poderiam comunicar connosco, se isso fosse possível.

Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 327



Ah, deixa-me entrar, deixa-me ver um dia como os teus olhos vêem...


Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 326



mal estamos separados por umas horas e uns quarteirões e já o meu sofrimento se chama sofrimento e o meu amor se chama o meu amor...Cada vez sentirei menos e recordarei mais, mas o que é a memória senão a língua dos sentimentos, um dicionário de caras e dias e perfumes que reaparecem como os verbos e os adjectivos no discurso, antecipando-se com avidez à coisa em si, ao presente puro, entristecendo-nos ou ensinando-nos por substituição até que o próprio ser se torna substituto, a cara que olha para trás arregala os olhos, a verdadeira face apaga-se lentamente, tal como nas velhas fotografias, e Jano torna-se de repente qualquer um de nós.

Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 325



Com ela eu sentia crescer um ar novo, os símbolos fabulosos do final de tarde ou a forma como as coisas se desenhavam quando estávamos juntos.


Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

domingo, 25 de junho de 2017

# 324



Mas o amor, essa palavra...

(...)

Meu amor, não te amo por ti, nem por mim, nem pelos dois juntos, não te amo porque o sangue me leve a amar-te, amo-te porque não és minha, porque estás do outro lado, de onde me convidas a saltar para ti e eu não posso, porque no mais fundo da possessão não estás em mim, não chego até ti, não passo para lá do teu corpo, do teu sorriso

(...)

uma ponte não se sustém apenas de um lado

(...)

deseja um amor-passaporte, um amor passa-montanhas, um amor-chave, um amor-revólver, um amor-que-lhe-ofereça-os-mil-olhos-de-Argos, a ubiquidade, o silêncio a partir do qual a música é possível, a raíz a partir da qual se poderia começar a tecer uma língua

(...)

Total parcial: quero-te. Total geral: amo-te

(...)

Aquilo a que muita gente chama amar consiste em escolher uma mulher e casar-se com ela. Escolhem-na, juro-te, eu vi-os fazerem-no. Como se se pudesse escolher no amor, como se o amor não fosse um raio que te parte os ossos e que te deixa petrificado no pátio.

(...)

Não se pode escolher Beatriz, não se pode escolher Julieta. Tu não escolhes a chuva que te vai ensopar até aos ossos quando sais de um concerto


Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 323



Oh meu amor, sinto a tua falta, dóis-me na pele, na garganta, quando respiro é como se o vazio me entrasse no peito onde já não estás.


Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 322



O que é que eu posso fazer? No meio da grande desordem continuo a ver-me como um cata-vento, e ao fim de tantas voltas há que marcar um Norte, um Sul. Chamar a alguém cata-vento demonstra falta de imaginação: depreendem-se as reviravoltas, mas não a intenção, a ponta da flecha que procura fixar-se e estabelecer-se no rio de vento.

(..)

eu ando por aí a vaguear, a dar-lhe voltas, à procura do Norte e do Sul, se é que os procuro. Se é que os procuro. Mas se não andasse à procura deles, porquê tudo isto?


Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 321



há uma altura em que o natural soa espantosamente a falso, que a realidade dos vinte se acotovela com a realidade dos quarenta e em cada cotovelo há uma lâmina que nos corta as mangas do casaco.

(...)

Porquê esta sede de ubiquidade, esta luta contra o tempo?


Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 320



a culpa não é de nenhum de nós. Não somos adultos (...) Essa é uma virtude que se paga caro. Depois de brincarem, as crianças puxam sempre os cabelos umas às outras.

Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 319



A ideia de me suicidar faz-me sempre bem


Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 318



A questão da unidade preocupava-o por causa da facilidade com que parecia cair nas piores armadilhas.

(,,,)

tinha comprovado com (primeiro) surpresa e (depois) ironia que muitos tipos se instalavam confortavelmente numa alegada unidade pessoal que não passava de uma unidade linguística e de uma esclerose prematura do carácter. Essas pessoas urdiam um sistema de princípios jamais avaliado intimamente

Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 317



a soma de todos os actos que define uma vida, parecia recusar-se a qualquer manifestação antes que a vida em si se acabasse

(...)

apenas os demais, os biógrafos, veriam a unidade

(...)

O problema estava em apreender (...) a unidade em plena pluralidade, que a unidade fosse como um vórtice de um turbilhão, e não a sedimentação de um mate deslavado e frio


Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 316



respirava até não poder mais, sentia-se viver até ao delírio no próprio acto de contemplar a confusão que o rodeava, perguntando a si póprio se algo em tudo aquilo tinha algum sentido

(...)

podia ser que através da loucura se pudesse chegar a uma razão que não fosse essa razão da qual a falência é a loucura

Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 315


Não estava bêbedo o suficiente para não sentir que tinha desfeito a sua casa, que dentro dela nada estava no sítio certo, mas que ao mesmo tempo - e era verdade, era maravilhosamente verdade - , pelo chão ou no tecto, por baixo da cama ou a flutuar numa bacia, havia estrelas e pedaços de eternidade, poemas como sóis e caras enormes de mulheres e de gatos onde ardia a fúria das suas espécies numa mistura de lixo e placas de jade, e na sua língua, onde as palavras se entrelaçavam noite e dia em furiosas batalhas de formigas contra centopeias, a blasfémia coexistia com a menção pura das essências e a imagem clara com o pior dos bufardos*

Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

* calão argentino

sábado, 24 de junho de 2017

# 314



Uma suspeita de paraíso recuperável. Não é possível que estejamos aqui para não poder ser.

Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 313



quem sabe se tudo aquilo não era mais do que a nostalgia de um paraíso terreno, um ideal de pureza

Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 312



Não ganhava nada em se perguntar o que fazia ali àquela hora com aquela gente, os queridos amigos desconhecidos de ontem e de amanhã, a gente que não era mais do que uma coincidência insignificante de lugar e de momento

Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 311



talvez houvessem outros caminhos e o que escolheram não era o único e não era o melhor, ou que talvez houvessem outros caminhos e que o que escolheram era o melhor, mas talvez houvessem outros caminhos mais suaves de percorrer e que não foram percorridos, ou foram-no pela metade


Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 310



dói-lhe o mundo

Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 309



je n'ai lieu qu'en toi

Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela )












domingo, 11 de junho de 2017

# 308



A vida era isso, comboios que partiam e levavam os outros, enquanto uma pessoa se deixava ficar na esquina com os pés molhados, a ouvir um piano mecânico e as gargalhadas a deixarem marcas nos vidros amarelentos dos salões onde nem sempre se tinha dinheiro para entrar.

Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 307


tudo lhe dói, até as aspirinas

Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 306



a branda fatalidade que exigia o fechar de olhos e o sentir do corpo como uma oferta

Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 305


para morrer um pouco menos dessa morte para trás que é toda a ignorância das coisas arrastadas pelo tempo, (...) queria fixá-la no seu próprio tempo (...) para não amar um fantasma

Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 304



a música enfraquecia as resistências e impunha uma espécie de respiração comum, a paz de um só enorme coração a bater por todos.

Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

sábado, 10 de junho de 2017

# 303



- E você está bêbedo, Horacio.
- Claro que sim. Este é o grande momento, a hora lúcida.

Júlio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 302



É estranho como se pode perder a inocência de repente, sem sequer se saber que se entrou noutra vida.

Júlio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 301



A mim, tudo o que me aconteceu na vida aconteceu ontem, o mais tardar ontem à noite.


Júlio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 300



As memórias só podem mudar o passado menos interessante.


Júlio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 299



só as ilusões eram capazes de mover os seus fiéis, as ilusões e não as verdades

Júlio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 298


[o absoluto] é o instante em que uma coisa atinge a sua profundidade máxima, o seu alcance máximo, o seu sentido máximo, deixando nesse momento de ter qualquer interesse.

Júlio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 297


Não uma explicação: o verbo puro, a-mar, a-mar.

(...)

Descobrir o método anti-explicativo

(...)

Vocês se não nomeiam as coisas, nem sequer as vêem


Júlio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 296


cada vez compreendíamos menos o que é um peixe, por esse caminho de não compreender íamos aproximando-nos deles, que não se compreendem

(...)

e pensávamos nessa coisa incrível que tínhamos lido, que um peixe sozinho no aquário entristece, e que basta pôr um espelho à sua frente para que ele volte a estar contente...

(...)


Descobríamos como a vida se instala em formas privadas de terceira dimensão, que desaparecem se se põem de lado ou deixam apenas uma pequena risca rosada imóvel e vertical na água. Um golpe de barbatana e aí está monstruosamente mais uma vez, com os olhos bigodes e barbatanas e do ventre por vezes saindo e flutuando uma fita de excremento que não se solta totalmente, um empecilho que de repente os coloca entre nós, arranca-os da sua perfeição de imagens puras, compromete-os


Júlio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 295


Toco a tua boca.
Com um dedo, toco a borda da tua boca, desenhando-a como se saísse da minha mão, como se a tua boca se entreabrisse pela primeira vez, e basta-me fechar os olhos para tudo desfazer e começar de novo, faço nascer outra vez a boca que desejo, a boca que a minha mão define e desenha na tua cara, uma boca escolhida entre todas as bocas, escolhida por mim com soberana liberdade para desenhá-la com a minha mão na tua cara e que, por um acaso que não procuro compreender, coincide exactamente com a tua boca, que sorri por baixo da que a minha mão te desenha.
Olhas-me, de perto me olhas, cada vez mais de perto, e então brincamos aos cíclopes, olhando-nos cada vez mais de perto. Os olhos agigantam-se, aproximam-se entre si, sobrepõem-se, e os cíclopes olham-se, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam sem vontade, mordendo-se com os lábios, quase não apoiando a língua nos dentes, brincando nos seus espaços onde um ar pesado vai e vem com um perfume velho e um silêncio. Então as minhas mãos tentam fundir-se no teu cabelo, acariciar lentamente as profundezas do teu cabelo enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de uma fragância obscura. E se nos mordemos a dor é doce, e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo do fôlego, essa morte instantânea é bela. E há apenas uma saliva e apenas um sabor a fruta madura, e eu sinto-te tremer em mim como a lua na água.


Júlio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 294


ela teria desejado saciar uma sede imensa e ler durante um tempo infinito

Júlio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 293


esperava verdadeiramente que ele a matasse e que essa morte fosse de Fénix

Júlio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 292


a felicidade tinha que ser outra coisa, algo talvez mais triste do que essa paz e esse prazer, um ar como que de unicórnio ou de ilha, uma queda interminável na imobilidade.

Júlio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 291



tu foste sempre um espelho terrível, uma espantosa máquina de repetições

Júlio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 290



em cada mulher parecida contigo acumulava-se uma espécie de silêncio ensurdecedor, uma pausa afiada e cristalina que acabava por se desmoronar tristemente, como um guarda-chuva molhado que se fecha.

Júlio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 289



Andávamos sem nos procurarmos, mas sabendo que andávamos para nos encontrarmos.


Júlio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 288



as pessoas que marcam encontros a horas precisas são as mesmas que necessitam de papel pautado para se escreverem ou que apertam o tubo da pasta de dentes desde o fundo.

Júlio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 287



um encontro casual era a menor casualidade das nossas vidas

Julio Cortázar - O Jogo do Mundo  (Rayuela)