sábado, 19 de agosto de 2017

# 379


mas no entanto, nós os dois desenhamos uma figura (...) tu és um ponto em qualquer parte e eu noutra, ambos em movimento (...) e pouco a pouco (...) vamos construindo uma figura absurda, desenhando com os nossos movimentos uma figura idêntica à que duas moscas fazem quando voam numa sala, daqui para ali, um movimento browniano é exactamente isso, compreendes agora, um ângulo recto, uma linha que sobe, daqui para ali, de trás para a frente, para cima, para baixo, espasmodicamente, travando no ar e arrancando noutra direcção no mesmo instante, e esses movimentos vão formando um desenho, uma figura, qualquer coisa de inexistente como tu e como eu, como dois pontos perdidos (...) que vão de cá para lá, de lá para cá, fazendo o seu desenho, dançando para ninguém, nem sequer para eles mesmos, uma figura interminável e sem sentido.

Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 378


Onde é que tu estás, onde estaremos nós a partir de hoje, dois pontos de um universo inexplicável, próximos ou afastados um do outro, dois pontos que criam uma linha, que se afastam e aproximam de forma arbitrária.

Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 377


deixando-me cair no orgulho imbecil do intelectual que se crê preparado para compreender

Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)



# 376


o molde oco sou eu

Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 375


eras o esboço daquilo que poderias ter sido debaixo de outras estrelas

Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 374


Esteja onde estiver, o seu cabelo arde como uma torre que me queima a partir de longe, desfazendo-me em pedaços, apenas com a sua ausência.

Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 373


Nunca me propus atingir a felicidade

Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 372


o mundo não me importa se não tiver forças para continuar a escolher algo verdadeiro, se uma pessoa se organiza como uma gaveta da cómoda

Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 371


é preciso lutar para viver, é a lei (...) e é sujo e amargo

Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 370



Para que é que vamos continuar a enganar-nos? Não se pode viver perto de um marionetista de sombras (...) Eu, com os meus cadeados e as minhas chaves de ar, eu que escrevo com o fumo. (...) Não existem substâncias mais letais do que as que se colam a qualquer coisa, que se respiram sem o saber, seja nas palavras, no amor ou na amizade. Já vai sendo tempo de me deixarem em paz, sozinho e em paz.

Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 369



- Há muito tempo que não tínhamos uma boa conversa metafísica, hã? Já não se fala dessa forma estilizada entre amigos, passa-se por snobe.

Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 368



 - Tu (...) tens uma ideia imperial no mais profundo de ti. O teu direito de cidade? Um domínio de cidade. O teu ressentimento vem de uma ambição mal curada. (....) O que eu não compreendo é a tua técnica. A ambição, porque não? És suficientemente extraordinário em alguns aspectos. No entanto, tudo o que te vi fazer até agora tem sido exactamente o oposto daquilo que outros ambiciosos teriam feito (...) Fazes exactamente o oposto, mas sem renunciar â ambição. E é isso que eu não consigo entender.
- (...) Digamos que isso a que tu chamas ambição não pode dar frutos senão pela renúncia (...) Não é bem isso, mas o que eu gostava de dizer é justamente indizível. (...) Não renuncio a nada, simplesmente faço o que posso para que as coisas renunciem a mim.

Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 367



- (...) Desde que te conheço que não fazes mais nada senão procurar, mas tenho a sensação que já tens no teu bolso aquilo de que andas à procura.
- Os místicos falaram disso, ainda que sem mencionar os bolsos.
- E entretanto vais destruindo a vida de uma quantidade de gente.
-  Elas consentem, meu velho, consentem. Tudo o que lhes falta é um empurrãozinho, eu passo e já está. Sem qualquer má intenção.

Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)



# 366



Era como se estivesse a especializar-se em causas perdidas. Primeiro perdê-las, e depois ir a correr atrás delas como um louco.

Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 365



- O absurdo é que não pareça um absurdo

Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 364


O que te dá força é que para ti não há futuro, como é lógico para a maioria dos agnósticos. Estás sempre vivo, no presente. Todas as coisas se ordenam de forma satisfatória, como num quadro de Van Eyck. Mas se algum dia te acontecesse essa coisa horrível que é não ter fé e ao mesmo tempo projectares-te em direcção à morte, em direcção ao escândalo dos escândalos, o teu espelho ficaria bastante embaciado.

Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 363



De todos os nossos sentimentos, é provável que o único que não seja verdadeiramente nosso seja a esperança. A esperança pertence à vida, é a própria vida a defender-se


Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 362


A vida vive-se por si mesma, quer se goste dela ou não.


Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 361



E essas crises  que a maioria das pessoas considera escandalosas e absurdas (...) servem para mostrar o verdadeiro absurdo, o de um mundo ordenado e a viver em calma.


Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 360



O absurdo é acreditar que podemos apreender a totalidade daquilo que somos neste ou em qualquer outro momento e intuir isso como algo coerente, algo aceitável (...).
Cada vez que entramos em crise o absurdo é total (...) a dialéctica só consegue arrumar a casa nos momentos de acalmia. (...) Ao contrário do que seria de esperar, agimos sempre por impulso no ponto culminante de uma crise, acabando por fazer o disparate mais inesperado. (...) A razão serve-nos apenas para dissecar a realidade com calma ou para analisar as suas futuras tormentas, mas jamais resolve uma crise.

Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 359



- Sem linguagem não há homem. Sem história não há homem.
- E sem crime não há assassino. Não tens nenhuma prova de que o homem não pudesse ter sido diferente.
- Não nos correu assim tão mal (...)
- Em que ponto de comparação é que te baseias para dizer que nos correu bem? Porque é que tivemos de inventar o Éden e viver mergulhados na nostalgia do paraíso perdido?


Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 358



Fiquemo-nos por aqilo a que Ronald chama comovedoramente a realidade e que acredita ser apenas uma.

(...)

Tu pensas que há uma realidade postulável porque tu e eu estamos aqui nesta noite (...) Tenho a sensação que isso te dá uma grande segurança ontológica: sentes-te seguro de ti mesmo, bem dentro de ti e daquilo que te rodeia. Mas se tivesses o dom da ubiquidade e pudesses assistir a essa mesma realidade a partir de mim e de Babs ao mesmo tempo, compreendes, se tu pudesses ver esta sala no mesmo momento a partir do meu lugar, com tudo o que eu fui e sou, e a partir de Babs, com tudo o que ela foi e é, talvez compreendesses que o teu egocentrismo de trazer por casa não te oferece qualquer realidade válida. Ela oferece-te apenas uma crença baseada no terror , uma necessidade de afirmar aquilo que te rodeia para não caíres dentro do buraco e acabares por sair pelo outro lado, vá-se lá saber onde.


Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

terça-feira, 15 de agosto de 2017

# 357


E houve essa noite em Esmirna, onde obriguei o objecto amado a suportar a presença de uma cortesã. A criança fazia do amor uma ideia que se mantinha austera, porque era exclusiva: o seu desgosto foi até à náusea. Depois habituou-se. Aquelas vãs tentativas explicavam-se bastante pelo gosto da devassidão; misturava-se a isso a esperança de inventar uma intimidade nova em que o companheiro de prazer não deixaria de ser o bem-amado e o amigo: o desejo de instruír o outro, de fazer passar a sua juventude por experiências que haviam sido as da minha; e talvez, mais inconfessada, a intenção de o rebaixar pouco a pouco ao plano das delícias vulgares que não obrigam a qualquer compromisso.
Havia angústia naquela minha necessidade de ferir aquela ternura desconfiada que ameaçava embaraçar a minha vida.

Marguerite Yourcenar - Memórias de Adriano

# 356



Não amava menos, amava mais. Mas o peso do amor, como o de um braço ternamente pousado sobre um peito, tornava-se pouco a pouco, mais difícil de suportar.

Marguerite Yourcenar - Memórias de Adriano
 

# 355



Não havia esperado a presença de Antínoo para me sentir deus.

Marguerite Yourcenar - Memórias de Adriano

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

# 354


Um ser jovem desligou-se de mim no momento em que os nossos laços teriam começado a pesar-me; outras rotinas sensuais, ou as mesmas sob outras formas, ter-se-iam estabelecido na sua sua vida; o futuro incluiria um casamento nem pior nem melhor que tantos outros, um posto na administração provincial, a gestão de um domínio rural na Bitinia; noutros casos, a inércia, a vida da corte continuada em qualquer situação subalterna, vendo as coisas pelo pior, uma dessas carreiras de favoritos descaídos que passam a ser confidentes ou alciviteiros. A prudência, se compreendo alguma coisa disso, consiste em não ignorar nada desses riscos, que são a própria vida, tendo apenas o cuidado de se esforçar por afastar os piores. Mas nem aquela criança nem eu éramos prudentes.

Marguerite Yourcenar - Memórias de Adriano


# 353



Ofereço aqui aos moralistas uma ocasião fácil de triunfar de mim. Os meus censores preparam-se para apontar na minha infelicidade as consequências de um desregramento, o resultado de um excesso: é-me tanto mais difícil contradizê-los quanto é certo que não vejo em que consiste o desregramento nem onde está o excesso. Esforço-me por reduzir o meu crime, se crime houve, a proporções justas: digo a mim mesmo que o suicidio não é raro e que é comum morrer aos vinte anos. A morte de Antínoo só é um problema e uma catástrofe para mim. Pode ser que o desastre tenha sido inseparável de uma alegria demasiado, de um acréscimo de experiência,  de que eu não teria consentido em privar-me nem privar o meu companheiro de perigo. Os meus próprios remorsos tornaram-se pouco a pouco uma forma amarga de posse, uma maneira de me convencer de que fui até ao fim o triste senhor do seu destino. Mas não ignoro que é preciso contar com as decisões desse belo desconhecido que, apesar de tudo, continua a ser para nós cada ente que amamos. Assumindo toda a culpa, reduzo esta jovem figura às proporções de uma estátua de cera que eu teria modelado e depois esmagado entre as minhas mãos. Não tenho o direito de depreciar a singular obra-prima que foi a sua partida; devo deixar a essa criança o mérito da sua própria morte.
Evidentemente que não incrimino a preferência sensual, demasiado vulgar, que determinava, em amor, a minha escolha. Atravessaram muitas vezes a minha vida paixões semelhantes; esses frequentes amores não me haviam custado, até então, mais que um mínimo de juramentos, de mentiras e de males. A minha breve predilecção por Lúcio levara-me apenas a algumas loucuras reparáveis. Nada impedia que sucedesse o mesmo com esta suprema ternura; nada, senão precisamente a qualidade única que a distinguia das outras. O hábito ter-nos-ia conduzido a esse fim sem glória, mas também sem desastre, que a vida oferece a todos os que não recusam o seu doce embotamento pela saciedade. Teria visto a paixão transformar-se em amizade, como querem os moralistas, ou em indiferença, o que é mais frequente.

Marguerite Yourcenar Memórias de Adriano

# 352



Pouco a pouco a luz mudou. Há mais de dois anos a passagem do tempo marcava-se pelo progresso de uma juventude que se forma, se vai dourando, sobe ao seu zénite: a voz grave que se habituou a gritar ordens aos pilotos e aos chefes das caçadas; a passada mais longa do corredor; as pernas do cavaleiro dominando mais destramente a montada; o estudante que, em Claudiópolis, apreendera de cor fragmentos de Homero, apaixonava-se pela poesia voluptuosa e sábia, entusiasmava-se com certas passagens de Platão. O meu jovem pastor tornava-se um jovem príncipe. Já não era a criança zelosa que, nas paragens, saltava do cavalo para me oferecer água das fontes recolhida nas suas mãos: o doador sabia agora o imenso valor dos seus dons

Marguerite Yourcenar Memórias de Adriano

# 351


Teria podido, por meio do divórcio, desembaraçar-me dessa mulher que não amava; homem privado, não teria hesitado em fazê-lo. Mas ela importunava-me muito pouco, e coisa alguma, na sua conduta, justificava um insulto público. Jovem esposa, melindrava-se com os meus afastamentos (...) Assistia agora, sem parecer aperceber-se disso, às manifestações de uma paixão que se anunciava duradoura. Como muitas mulheres pouco sensíveis ao amor, compreendia mal o poder; essa ignorância excluía ao mesmo tempo a indulgência e o ciúme. Inquietar-se-ia apenas se os seus títulos ou a sua segurança estivessem ameaçados, o que não era o caso. Não lhe restava nada daquela graça adolescente que outrora me havia brevemente interessado: aquela espanhola prematuramente envelhecida era grave e dura. Dava-me satisfação que a sua frieza a tivesse impedido de ter amante; agradava-me que ela soubesse usar com dignidade os seus véus de matrona que eram quase véus de viúva. Gostava muito que figurasse nas moedas romanas um perfil de imperatriz tendo no reverso uma inscrição, umas vezes ao Pudor, outras à Tranquilidade. Acontecia-me pensar naquele casamento fictício que, nas festas de Elêusis, se realizou entre a grande sacerdotisa e o hierofante, casamento que não é uma união, nem mesmo um contacto, mas que é um rito e, como tal, sagrado.

Marguerite Yourcenar - Memórias de Adriano

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

# 350



Estações alciónicas, solstício dos meus dias...Longe de embelezar, à distância, a minha felicidade, devo lutar para lhe não turvar a imagem, a sua própria recordação é hoje demasiado forte para mim. Mais sincero que a maioria dos homens, confesso sem rodeios as causas secretas dessa felicidade: aquela calma tão propícia aos trabalhos e às disciplinas parece-me um dos mais belos efeitos do amor. E espanto-me de que estas alegrias tão precárias, tão raramente perfeitas no decorrer da vida humana, sob qualquer aspecto além de que nós os tenhamos procurado e recebido, sejam consideradas com tanta desconfiança por pretendidos sábios, que eles receiem o seu hábito e excesso em vez de temer a sua falta é perda, que passem a tiranizar os sentidos um tempo que seria mais bem empregado a ordenar ou a embelezar a alma. Naquela época punha em fortalecer a minha felicidade, apreciá-la, e também em julgá-la, a atenção que sempre dispensara aos mais pequenos pormenores dos meus actos; e o que é a própria voluptuosidade senão um momento de atenção apaixonada do corpo? Toda a felicidade é uma obra-prima: o menor erro falseia-a, a menor hesitação altera-a, a menor deselegância desfeia-a, a menor estupidez embrutece-a. A minha não é responsável em coisa alguma por aquelas das minhas imprudências que mais tarde a quebraram. Julgo ainda que teria sido possível a um homem mais hábil que eu ser feliz até à morte.

Marguerite Yourcenar - Memórias de Adriano

# 349


Quando me volto de novo sobre esses anos julgo reencontrar a Idade de Ouro. Tudo era fácil: outrora os esforços eram compensados por uma satisfação quase divina. A viagem era um jogo: prazer regulado, conhecido, sabiamente preparado. O trabalho incessante não era mais do que uma forma de voluptuosidade. A minha vida, onde tudo chegava tarde, o poder, a felicidade também, adquria o esplendor do meio-dia pleno, o ensoalheiramento das horas da sesta em que tudo é banhado por uma atmosfera de ouro - os objectos do quarto e o corpo estendido ao nosso lado. A paixão culminada tem a sua inocência, quase tão frágil como qualquer outra: o resto da beleza humana passava à categoria de espectàculo, deixava de ser a caça de que eu tinha sido o caçador. Aquela aventura, começada vulgarmente, enriquecia mas simplificava também a minha vida: o futuro pouco importava; deixei de interrogar os oráculos, as estrelas passaram a ser apenas admiráreis desenhos na abóboda do céu. Nunca havia notado com tanta delícia a palidez da madrugada no horizonte das ilhas, a frescura das noites consagradas às ninfas é frequentemente visitaras pelas aves de passagem, o voo pesado das codornizes ao crepúsculo. Reli os poetas: alguns pareceram-me melhores que anteriormente, a maior parte, piores. Escrevi versos menos insuficientes que de costume.

Marguerite Yourcenar - Memórias de Adriano