quinta-feira, 3 de agosto de 2017

# 353



Ofereço aqui aos moralistas uma ocasião fácil de triunfar de mim. Os meus censores preparam-se para apontar na minha infelicidade as consequências de um desregramento, o resultado de um excesso: é-me tanto mais difícil contradizê-los quanto é certo que não vejo em que consiste o desregramento nem onde está o excesso. Esforço-me por reduzir o meu crime, se crime houve, a proporções justas: digo a mim mesmo que o suicidio não é raro e que é comum morrer aos vinte anos. A morte de Antínoo só é um problema e uma catástrofe para mim. Pode ser que o desastre tenha sido inseparável de uma alegria demasiado, de um acréscimo de experiência,  de que eu não teria consentido em privar-me nem privar o meu companheiro de perigo. Os meus próprios remorsos tornaram-se pouco a pouco uma forma amarga de posse, uma maneira de me convencer de que fui até ao fim o triste senhor do seu destino. Mas não ignoro que é preciso contar com as decisões desse belo desconhecido que, apesar de tudo, continua a ser para nós cada ente que amamos. Assumindo toda a culpa, reduzo esta jovem figura às proporções de uma estátua de cera que eu teria modelado e depois esmagado entre as minhas mãos. Não tenho o direito de depreciar a singular obra-prima que foi a sua partida; devo deixar a essa criança o mérito da sua própria morte.
Evidentemente que não incrimino a preferência sensual, demasiado vulgar, que determinava, em amor, a minha escolha. Atravessaram muitas vezes a minha vida paixões semelhantes; esses frequentes amores não me haviam custado, até então, mais que um mínimo de juramentos, de mentiras e de males. A minha breve predilecção por Lúcio levara-me apenas a algumas loucuras reparáveis. Nada impedia que sucedesse o mesmo com esta suprema ternura; nada, senão precisamente a qualidade única que a distinguia das outras. O hábito ter-nos-ia conduzido a esse fim sem glória, mas também sem desastre, que a vida oferece a todos os que não recusam o seu doce embotamento pela saciedade. Teria visto a paixão transformar-se em amizade, como querem os moralistas, ou em indiferença, o que é mais frequente.

Marguerite Yourcenar Memórias de Adriano

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