sábado, 6 de julho de 2013

# 17



Lembro-me de por aqueles dias ter reparado num título do jornal que falava da morte à navalhada de um empresário madrileno, e de ter mudado rapidamente de página sem ler o texto completo, precisamente por causa da ilustração da notícia: a fotografia de um homem estendido no chão no meio da rua, na calçada, sem casaco nem gravata nem camisa, ou com ela aberta e com as fraldas de fora, enquanto os da Emergência Médica Municipal tentavam reanimá-lo, salvá-lo, com um charco de sangue à sua volta e aquela camisa branca empapada e manchada, ou foi o que imaginei pelo que me pareceu ver. Pelo ângulo adoptado não se lhe via bem a cara e, fosse como fosse, não me detive a olhar para ela, detesto esta mania actual da imprensa de não poupar ao leitor ou ao espectador as imagens mais brutais - ou será que são estes que as pedem, como seres globalmente transtornados; mas ninguém pede nunca mais que aquilo que já conhece e lhe foi dado - como se a descrição com palavras não bastasse e sem o mínimo respeito pelo indivíduo brutalizado, que já não pode defender-se nem preservar-se dos olhares a que a sua consciência desperta jamais se teria sujeitado, tal como não se teria exposto diante de desconhecidos ou conhecidos de roupão de banho ou de pijama, por não se julgar apresentável.
E como fotografar um homem morto ou agonizante, e mais ainda se por violência, me parece um abuso e a máxima falta de respeito por quem acaba de se transformar numa vítima ou num cadáver - se ainda se pode vê-lo é como se não tivesse morrido de todo ou não fosse inteiramente passado, e então é preciso que o deixem morrer de verdade e o deixem sair do tempo sem testemunhas importunas e sem público - também não estava disposta a colaborar com esse costume que nos é imposto, não me apetece olhar o que nos convidam a olhar ou quase nos obrigam, e a somar os meus olhos curiosos e horrorizados aos de centenas de milhar de outros cujas cabeças estarão pensando enquanto observam, com uma espécie de fascínio reprimido ou de seguro alívio; "Não sou eu, é outro este que tenho aqui à minha frente. Não sou eu porque lhe estou a ver a cara, que não é a minha. Leio o seu nome na imprensa e também não é o meu, não coincide, não me chamo assim. Calhou a outro, que terá feito ele, em que enredos ou dívidas se terá metido ou que prejuízos terríveis terá causado para o terem cosido à navalhada. Eu cá não me meto em nada, nem julgo ter inimigos, eu abstenho-me. Ou então meto-me e faço das minhas, mas não me apanharam. Por sorte é outro e não eu o morto que aqui nos é mostrado e de quem se fala, portanto estou mais a salvo que ontem, ontem escapei. Em compensação, caçaram este pobre diabo."

(...)

Depois a notícia desaparecera por completo dos jornais, como actualmente costuma acontecer com todas: as pessoas não querem saber porque é que alguma coisa aconteceu, só que aconteceu e que o mundo está cheio de imprudências, perigos, ameaças e má sorte que roçam por nós e em contrapartida apanham e matam os nossos semelhantes descuidados, ou porventura não eleitos. Convive-se sem problemas com mil mistérios por resolver que nos ocupam durante dez minutos de manhã e que depois se esquecem sem nos deixar inquietação nem rasto. É preciso não aprofundar nada nem demorar muito tempo em qualquer facto ou história que nos desvie a atenção de uma coisa para outra e que nos reitere as desgraças alheias, como se depois de cada uma pensássemos: "Olha, que horror. E pronto. De que outros horrores nos teremos livrado? Precisamos todos os dias de nos sentir sobreviventes e imortais por contraste, e assim, contem-nos atrocidades diferentes, porque as de ontem já as gastámos".


Javier Marias - Os enamoramentos

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