sábado, 12 de dezembro de 2020

este mundo tosco e tumultuoso por nós criado (# 468)

 Compreendo o vosso cepticismo. Porque é que, em tempos como estes, os deuses haviam de regressar à Terra para estar entre os homens? A verdade é que nunca chegámos a ir embora: vocês é que deixaram de nos ter em conta. Como poderíamos partir, nós, que não podemos estar senão em todas as partes? Demos simplesmente a impressão de que nos tínhamos retirado, por um espaço de tempo aceitável, como que para mostrar que sabemos quando não somos desejados. Apesar disso, não resistimos a revelar-vos a nossa presença de vez em quando, movidos pelo nosso incurável tédio, ou gosto pelas travessuras, ou por aquela persistente nostalgia que acalentamos por este mundo tosco e tumultuoso por nós criado


John Banville - Os Infinitos

a vida demasiado apertada, assenta-lhe mal (# 467)

 A realidade é essa: a vida, a vida demasiado apertada, assenta-lhe mal, tornando-o demasiado ciente dos seus defeitos e daquilo que sorumbaticamente, considera a sua inalterável pequenez de espírito.


John Banville - Os Infinitos

citar (# 466)

 citar é citar-se, não sou o único a dizê-lo e a fazê-lo.


Julio Cortázar -  A Volta ao Dia Em 80 Mundos

carapaça quotidiana (# 465)

 (nem sempre se pode abandonar uma carapaça quotidiana de cinquenta anos)

Julio Cortázar - A Volta ao Dia Em 80 Mundos

ocultamento dos corpos (# 464)

 

Uma cidade que não mantenha os seus mortos longe do olhar, uma cidade onde possam ser vistos jazendo nas ruas e vielas, em jardins e parques de estacionamento, não é uma cidade, mas um inferno. O facto de este inferno reflectir a nossa experiência de vida de um modo mais realista e essencialmente mais verdadeiro não importa. Sabemos que é assim que as coisas são, mas não queremos enfrentá-las. Daí o acto colectivo de repressão simbolizado pelo ocultamento dos corpos.

E, no entanto, não é fácil dizer o que é exactamente reprimido. Não pode ser a própria morte, uma vez que a sua presença na sociedade é demasiado visível


Karl Ove Knausgard - A Morte do Pai

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

No momento em que a vida deixa o corpo (# 463)

 

No momento em que a vida deixa o corpo, este pertence à esfera da morte. Lâmpadas, malas, tapetes, maçanetas, janelas. Campos, pântanos, ribeiros, , montanhas, nuvens, o céu. Nada disto nos é estranho.Estamos constantemente rodeados de objetos e fenómenos do mundo dos mortos. E, no entanto, poças coisas nos provocam maior desconforto do que ver um ser humano nestas condições, pelo menos se tivermos em conta quanto nos esforçamos por manter os corpos mortos longe da nossa vista. Nos grandes hospitais eles não são apenas escondidos em quartos privados e inacessíveis; até os caminhos para lá chegar são dissimulados, com os seus próprios elevadores e corredores, e, se entrássemos por acaso num lugar desses, os cadáveres estariam sempre cobertos por lençóis. Ao serem transportados do hospital, são-no a partir de uma saída discreta, em carros com vidros fumados; nas igrejas são velados numa sala sem janelas, durante o funeral repousam em caixões fechados, até serem enterrados numa cova ou cremados no forno. É difícil encontrar um objectivo prático que justifique tudo isto. Os cadáveres poderiam, por exemplo, ser transportados destapados pelos corredores do hospital e daí seguirem em carros normais para, sem que isso representasse um risco para ninguém. O homem idoso que morre durante uma sessão de cinema pode muito bem permanecer sentado até ao fim do filme e, já agora, durante a sessão seguinte também. O professor que tem um enfarte no recreio da escola não tem necessariamente de ser removido a toda a pressa, não faz mal deixá-lo onde está até que o contínuo tenha tempo para cuidar dele, mesmo que isso só aconteça bastante tempo depois. Se um pássaro posasse sobre ele e lhe desse alguma bicada, faria alguma diferença? Aquilo que o aguarda na sepultura será melhor só porque não o conseguimos ver?Desde que os corpos não estejam no meio da rua a impedir a passagem, não há motivo para pressas, pois não podem morrer segunda vez.

Karl Ove Knausgard - A Morte do Pai

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Para o coração, a vida é simples (# 462)

 

Para o coração, a vida é simples: bate enquanto pode. Depois pára. Um dia, mais. Eco ou mais tarde, este movimento propulsor cessa e o sangue começa a fluir até ao ponto mais baixado corpo onde se acumula numa pequena poça, visível do exterior como uma mancha escura e suave numa pele cada vez mais pálida, e isto enquanto a temperatura desce os membros enrijecem e os intestinos se esvaziam. Estas alterações das primeiras horas ocorrem de modo tão lento e inexorável que têm em si algodão ritual, como se a vida capitulasse segundo determinadas regras, com uma espécie de gentlemen’s agreement que os representantes da morte também respeitam, já que esperam que a vida se retire para iniciarem a invasão da nova paisagem. Torna-se então um fenómeno irreversível. Nada pode já deter as enormes hordas de bactérias que começam a espalhar-se pelo interior do corpo. Se o tivessem tentado apenas umas horas antes, teriam deparado com uma resistência feroz, mas agora tudo em volta está calmo, e elas avançam cada vez mais na humidade e escuridão. Chegam aos canais de Havers, às criptas de Lieberkuhn, aos ilhéus de Langerhans. Continuam até à cápsula de Bowman nos rins, à coluna de Clark na medula espinal, à substância negra do mesencéfalo. E chegam ao coração. Este continua intacto mas já não goza do movimento a que toda a sua construção é dedicada, parece um cenário estranho e desolador, como uma fábrica que os trabalhadores foram obrigados a abandonar à pressa, os veículos parados iluminando de amarelo a escuridão da floresta, os armazéns vazios, os vagões carregados sobre os trilhos, estendendo-se em fila ao longo da encosta da colina.

Karl Ove Knausgard - A Morte do Pai