quarta-feira, 31 de julho de 2019

# 453


O Jogo da macaca joga-se com uma pedra que tem de se empurrar com a biqueira do sapato. Ingredientes: um passeio, uma pedra, um sapato e um belo desenho feito com giz, de preferência colorido. O Céu está lá ao fundo, e a Terra aqui em baixo, é muito difícil acertar com a pedra no Céu, calcula-se quase sempre mal e a pedra sai do desenho. Pouco a pouco, no entanto, vai-se adquirindo a habilidade necessária para acertar em todas as casas (a macaca em caracol, rectangular, de fantasia, pouco utilizada), e um dia aprende-se a sair da Terra e a levar a pedra até ao Céu, até chegar ao Céu (...); o problema é que precisamente nessa altura, quando quase ninguém aprendeu ainda a levar a pedra até ao Céu, que a infância se acaba e de repente se cai nos romances, na angústia inútil, na especulação de outro Céu ao qual também é preciso aprender a chegar. E como já se saiu da infância (...) esquece-se que para chegar ao Céu são necessários uma pedra e a biqueira de um sapato como utensílios básicos. (...) Uma pedra e a biqueira do sapato, (...) algo que desde a infância (...) mostrava a via recta para o Céu (...), sim, chegar ao Céu aos pontapés, chegar até lá com a pedra (carregar a sua cruz? Artefacto pouco manejável) para no último pontapé atirá-la contra o azul, o azul, o azul, plaf de vidro partido, para a cama sem sobremesa, menino mau, e que importava isso se atrás do vidro partido estava o kibbutz, se o Céu não era mais do que um nome infantil para o seu kibbutz.


Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 452



Só aquele que espera poderá encontrar o inesperado.


Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 451



O vinho faz a noite assentar.


Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

# 450



Como é cansativo ser sempre o mesmo. Irremediavelmente.


Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

sábado, 13 de julho de 2019

# 449



(...)  há que reconhecer que a história não é apenas selectiva, é também discriminatória, só colhe da vida o que lhe interessa como material socialmente tido por histórico e despreza todo o resto, precisamente onde talvez poderia ser encontrada a verdadeira explicação dos factos, das coisas, da puta realidade. Em verdade vos direi, em verdade vos digo que mais vale ser romancista, ficcionista, mentiroso.


José Saramago - A Viagem do Elefante

sexta-feira, 5 de julho de 2019

# 448



Em 1923, um grupo de jovens sapadores fazia o levantamento topográfico de uma parte inacessível de África. No final de um dia de trabalho particularmente penoso, sob o sol tropical, restava marcar apenas uma colina na mesa topográfica. Os homens ansiavam por regressar à base; ocorreu a um deles que, tratando-se de uma única colina, seria fácil preenchê-la, pelos olhos da fé e alguma imaginação, na sala de desenho. A sugestão foi aprovada. O engenhoso cavalheiro cortou a fotografia de um elefante de uma revista, fixou-a ao mapa que tinham concebido e delineou a forma, criando linhas topográficas da colina que não tinham mapeado. A colina em forma de elefante ainda pode ver-se hoje em dia, no canto superior esquerdo da folha 17 de Africa (Gold Coast), da série britânica de mapas I: 62 500.
Esta vitória da imaginação (ou do senso comum) sobre o dever, sobre as restrições da verdade factual, é, evidentemente rara. O mundo a que chamamos real tem fronteiras inultrapassáveis, nas quais o princípio há muito estabelecido de que dois corpos (quanto mais duas montanhas) não podem ocupar o mesmo lugar ao mesmo tempo é rigorosamente observado.


Alberto Manguel - Duccionário de Lugares Imaginários

# 447



Nem todas as viagens têm a ver com pesquisa ou exploração.
(...)
Além de Ulisses amaldiçoado por Poseidon e de Caim amaldiçoado por Jeová, conhecemos viajantes eternos como (...) o Holandês Voador (...). Sem dúvida que a impossibilidade de parar a descansar é uma imposição dura, mas também pode ter as suas vantagens: percorrer o mundo num espírito de descoberta, ver novas paisagens ou revisitar outras antigas, tomar contacto com costumes estrangeiros ou com culturas desconhecidas, são actividades (...) apresentadas desde há séculos como a melhor forma de educação possível.
Mas há um lado negativo neste conceito generoso de viagem eterna. (...) a viagem assume a forma de uma fuga. O Judeu Errante é afastado da sua pátria por ser vítima de perseguição, passar fome e não poder trabalhar. Tem de fugir à ameaça dos campos de concentração, dos gulags, das violações e das chacinas. Tem de fugir da chegada de exércitos, da invasão de multinacionais, da ameaça de deflorestação, do perigo de secas e inundações, do praga de ditaduras militares ou religiosas. Tem de atravessar planícies e montanhas, de se fazer ao mar em embarcações frágeis (...) Tem de tentar imaginar que na outra margem estarão pessoas mais afortunadas, que o acolherão de braços abertos, que lhe permitirão levar uma vida decente (...)
A poetisa argentina Alejandra Pizarnik, bem versada em viagens imaginárias, escreveu o seguinte:

E se a alma perguntasse "Ainda é longe?", teríamos de responder:
Do outro lado do rio, não deste, mas do que está mais além.

Neste sentido, toda a viagem, imaginária ou real, é sequencial. Nenhuma permite que o explorador regresse ao ponto de partida. Mal se faz ao mar, o porto modifica-se atrás de si: surgem novos edifícios em ruas redesenhadas e aí vão viver novas pessoas rodeadas por uma paisagem que também mudou. Mesmo na memória, a nostalgia reconfigura o mundo que ficou para trás (...) O explorador - viajante, imigrante, exilado, pária, está condenado a recordar um lugar que já não existe. Nesse sentido, toda a nossa geografia é imaginária.



Alberto Manguel - Diccionário de Lugares Imaginários


# 446


A viagem imaginária não se limita a permitir que o viajante permaneça em casa; o lugar de exploração também pode estar contido num espaço microcósmico. O seu âmbito é o universo é mais além, mas também (...) o próprio lugar onde nos encontramos: a nossa mente, o nosso corpo, o nosso quarto, a nossa casa, tudo o que parece impossibilitar a viagem porque nos contém, porque nos limita, como a nossa pele. Hamlet exclama: "Eu podia estar fechado numa casca de noz e sentir-me rei de um espaço infindo." Hamlet tem razão: o lugar onde nos encontramos é, como qualquer espaço, infinito. Uma sucessão de vidas não seria suficiente para o explorar.
(...) Xavier de Maistre tentou parodiar as grandes narrativas de viagens do século XVIII contando a exploração do seu próprio quarto na prisão de Turim (...) Ignorava que Kafka escreveria um dia "Toda a gente transporta um quarto dentro de si", mas intuiu a afirmação de Kafka e propôs-se analisá-la. A sua obra (...) explora no decurso de seis longas semanas, o espaço delimitado por quatro paredes da cela onde está encarcerado, e elogia este tipo de viagem, por não custar dinheiro.
(...)
Segundo uma lei científica, não podemos observar o local de onde fazemos uma observação: por consequência, é como se só aquilo que estamos mais convictos de conhecer - o nosso chez nous - fosse inexplorável. De Maistre demonstra que é exactamente o contrário.


Alberto Manguel - Diccionário de Lugares Imaginários




# 445



A geografia imaginaria, ao contrário do género que se encontra em enciclopédias e atlas, não tem fronteiras. Os seus lugares existem num espaço ilimitado e ocupam um espaço de abundância infinita. Permitem a criação de sociedades perfeitamente eficazes e perfeitamente atrozes, lugares onde tudo é possível (segundo regras secretas e rígidas) e onde nos podemos ver como outras pessoas, na nossa condição humana de eternos sobreviventes de um naufrágio ou como cidadãos de um Estado feliz ou desditoso.
(...)
A geografia imaginaria também nos permite resolver problemas políticos complexos, ou pelo menos reflectir melhor sobre eles, no mundo em que vivemos.
(...)
A 4 de Novembro de 2003, 14 refugíamos curdos e quatro marinheiros indonésios chegaram numa pequena embarcação à ilha de Melville, em águas australianas (...) com intenção de requerer asilo político.
Ao saber desse acontecimento (...) John Howard, primeiro-ministro da Austrália, tomou uma decisão drástica: decidiu cortar os laços da nação com Melville e, em nome do seu governo, renegou a ilha (...) Em 2001, o governo australiano já eliminara a ilha de Natal da sua zona de migração a fim de poder exportar para as suas praias inóspitas várias centenas de imigrantes ilegais.
Se o mapa do nosso mundo pode ser modificado pela imaginação (...) a fim de ser povoado com lugares ricos em possibilidades fantásticas, porque não empreennder a abordagem oposta e livrarão-nos de alguns outros que são inconvenientes, perigosos ou ineficazes? Os australianos agiram movidos pela desumanidade, pela injustiça e pelo egoísmo; nós podemos agir por humanidade, ecologia e inteligência. A escritora canadiana Anne Lafontaine sugeriu o seguinte: esperar até que os dirigentes políticos se reúnam numa das suas frequentes cimeiras em qualquer pequena ilha mediterrânea e então, de uma forma rápida e ousada, eliminar essa ilha dos mapas. Imaginemos então, no lugar dessa ilha um ponto vazio, uma mancha, do tamanho de uma picada de insecto, uma parte invisível do mar.


Alberto Manguel - Diccionário de Lugares Imaginários

# 443



Thomas More quis situar a sua sociedade ideal (algo que não considerava inatingível) numa ilha que, embora sem localização física, fosse plausível. Defoe foi mais concreto: Juan Fernández, a ilha das tribulações de Alexander Selkirk, existe, e o escritor limitou-se a apropriar-se dela e a disfarçá-la para dar ao seu Robinson maior liberdade. O seu sucessor, Jonathan Swift, por seu lado, inventou tudo: cenário, aventuras e situação. As Viagens de Gulliver (...) apresentam um rol de ilhas inteiramente imaginárias na sua geografia e história, nos seus atributos físicos e na sua cultura. O bispo que criticou o livro de Swift a pretexto de "estar repleto de mentiras improváveis" (..,) faz honra ao poder de ficção de Swift e mostra até que ponto um bom leitor também precisa de ser crédulo.
Na ilha de Lilliput, tudo é minúsculo, motivo pelo qual todas as discussões e batalhas (...) parecem tão ridículas. Em Brobdingnag tudo é enorme, desde os seus habitantes até à sua visão do mundo; por isso o rei, depois de ouvir Gulliver contar a história da História da Europa, é forçado a emitir o seguinte parecer: " Não posso deixar de concluir que o grosso dos vossos nativos é a raça mais perniciosa de pequenos vermes odiosos de que a natureza já sofreu e que rasteja sobre a superfície da Terra." Na ilha de Laputa (...) e em Lagado, Swift ridiculariza projectos científicos fátuos, em Glubbdubdrib (...) zomba das mentiras dos historiadores e do nosso desejo de imortalidade; na ilha dos Houyhnhnms, contrapõe à cultura de cavalheiros requintados e civilizados aos brutais Yahoo!'s, que se assemelham a nós (...)
As ilhas de Swift são espelhos deformadores do nosso próprio mundo mas são igualmente novos mundos por direito próprio.


Alberto Manguel - Diccionário de Lugares Imaginários

# 442



a verdadeira geografia imaginária das ilhas tem início com a Utopia, de Thomas More. (...) crente convicto na teoria de que os fins justificam os meios e, por conseguinte, defensor acérrimo da tortura, santo canonizado apesar da sua natureza sedenta de sangue e dos seus fanáticos preconceitos raciais, More inventou o supremo lugar imaginário: o lugar que não ficava em parte nenhuma. (...) compôs num latim requintado o relato de uma ilha governada por uma espécie de comunismo liberal, onde não existia propriedade privada, onde havia liberdade religiosa e educação para todos, homens e mulheres. Contudo, Utopia não é uma sociedade igualitária. As mulheres sujeitam-se à autoridade dos maridos, os filhos à dos pais, os jovens à dos mais velhos, e a escravatura não foi abolida. More publicou o livro em 1516, sob a supervisão do seu amigo Erasmo, atribuindo assim um nome (que significa literalmente "nenhum lugar") a um género eu originaria inúmeras sociedades imaginárias. (...) Utopia cria o primeiro arquétipo insular: uma ilha cujo sistema sugere um sistema ideal, didáctico - simultaneamente positivo e negativo - a raiar a alegoria, que pode servir (ou não) para pór em causa os nossos próprios sistemas de governo.

A 25 de Abril de 1719 foram publicados dois volumes com o título (...) A vida e Estranhas Aventuras Surpreendentes de Robinson Crusoé de Iorque, marinheiro, que pretendiam ser um relato verdadeiro, "Escrito pelo Próprio".  (...) Segundo o autor secreto, Daniel Defoe, não se tratava de ficção: ele inventava crónicas verdadeiras, na tradição dos historiadores repudiados por Heródoto. Pouco importava o livro não ser o testemunho fimável que pretendia ser: o carácter imediato da narrativa pungente foi suficiente para persuadir os leitores do seu rigor; o narrador pode ser fictício, mas os acontecimentos que narra são verdadeiros.
Cerca de 12 anos antes de o livro ser publicado, um marinheiro chamado Alexander Selrick optara por ficar sozinho na ilha desabitada de Juan Fernández (...) sendo resgatado cinco anos mais tarde (...). A história de Selrick inspirou Defoe, que a desenvolveu e melhorou, transformando o relato do marinheiro numa crónica da fundação de uma sociedade primitiva (...) Robinson é o homo primus, um Adão que instaura todas as artes e aptidões humanas (...) A sua ilha torna-se, assim, o modelo primordial de todas as instituições humanas e, com o seu desenvolvimento singular, revela as possibilidades intrínsecas de uma sociedade plural.
(...)
Embora, no fim, Robinson regresse ao seu país, os leitores sabem que, na realidade, ele nunca abandonará a sua ilha: nela, é senhor do mundo, dono dos seus domínios: noutro sítio qualquer, não é ninguém. Fosse qual fosse o desejo de Selkirk, Robinson não pode ser resgatado. Jorge Luis Borges, no seu soneto Alexander Selkirk (...), atribuiu estas palavras ao Robinson original, à chegada a Inglaterra:

Já não sou aquele que eternamente
Contemplava o mar e seu profundo ermo
E como farei para que esse outro saiba
Que estou aqui, a salvo, entre a minha gente?

Alberto Manguel - Diccionário de Lugares Imaginários

# 441


Um povo continental dificilmente exige a recriação de outras terras: para além daquelas montanhas, ou daquelas florestas, ou daqueles vales, por certo existem outros povos que são seu reflexo e cujas histórias ecoam as suas

Alberto Manguel - Diccionário de Lugares Imaginários

# 440


Imaginária ou não, a viagem tem de desenrolar-se na água, em terra ou no céu. De todas as características geográficas acessíveis ao escritor de viagens, talvez as ilhas sejam as mais procuradas, uma vez que reúnem os três espaços num cenário conveniente. (...) A vida numa ilha impõe ao observador uma percepção invertida do mundo. Em vez de o mar ser visto como algo rodeado por terra (...) um ilhéu vê a terra embalada pelo mar. Na geometria continental, a terra é a circunferência que enquadra o centro aquático; na de um ilhéu, ele e a terra, juntos, ocupam o centro, e são o ponto fixo de um universo em constante alternância de marés. Para os habitantes da terra, os mares e os lagos são como fendas ou buracos num vasto espaço doméstico; para o ilhéu, o mar tem algo do céu e a sua ilha tem as características de uma estrela, um ponto sensorial luminoso no grande caos primordial que o rodeia. Não é por acaso que, nos mapas, as ilhas parecem constelações. No século XV, o poeta espanhol Jorge Manrique afirmou que "As nossas vidas são os Rios que correm para o mar, que é a morte". Esta convergência inexorável não o é para o ilhéu, que encara as vidas como barcos vogando em águas mortais, até por fim ancorarem em terra firme. "Um corpo de terra rodeado de água": é assim que os ingleses definem uma ilha, sendo o "corpo", como um corpo humano, a corporização do eu, a essência de um lugar singular. Para o ilhéu, o mar que o rodeia só existe porque a sua ilha exige a sua existência.

Alberto Manguel - Diccionário de Lugares Imaginários

# 439


Talvez os lugares imaginário derivem simplesmente do desejo de ver para além do horizonte (...) "Viajar com optimismo é melhor do que chegar", escreveu  Robert Louis Stevenson (...)
A escrita de uma crónica de viagem imaginaria confirma a afirmação de Stevenson. A verdadeira viagem é entravada por atrasos, por longos períodos de espera enfadonhos, por dias e dias durante os quais nada acontece excepto os numerosos pequenos padecimentos que atacam o corpo de quem viaja, e qualquer relato que tente embelezar aos olhos do leitor esses momentos desagradáveis mente tanto como um escritor de ficção.

Alberto Manguel - Diccionário de Lugares Imaginários

# 438



O maior explorador é alguém que não deseja verdadeiramente explorar, que pretende voltar para casa e aí ficar, mas que, no entanto, está condenado (...) a procurar sempre novos horizontes. Por essa razão, a Odisseia é o poema emblemático da exploração, quer voluntária, quer involuntária, com todas as suas falsas partidas e finais ilusórios. A invocação, no início da obra, em que o poeta pede à sua Musa que lhe fale "do homem astuto que tanto vagueou (...)" assemelha-se mais a uma coda para o leitor, como se a Musa tivesse terminado a sua tarefa, a busca fosse infinita e Ítaca não passasse de mais um lugar de paragem.
O primeiro livro da Odisseia diz-nos repetidamente que decorreu algum tempo desde que Ulisses partiu de Tróia, tendo entretanto sofrido numerosos percalços, e que nem a mulher nem o filho sabem do seu paradeiro. Pelo contrário, as últimas páginas deixam-nos de respiração suspensa, com a batalha por Atenas interrompida e a promessa implícita de uma futura viagem, profetizada pela sombra de Tirésias. Não só nem o começo nem o fim são definitivos, como cada uma das aventuras de Ulisses aborda a história do regresso de um ponto de vista diferente, apresentando repetidos conflitos e uma ameaça reiterada com novas personagens. O regresso a casa do herói é eterno: os prodígios que descobre de certo modo já se encontram dentro dele. Como todos os exploradores, Ulisses regressa a qualquer coisa que parece nova, mas que se revelará familiar. O rei Salomão, como observa o filósofo Francis Bacon, reconheceu que "não há nada de novo debaixo do sol" e, retomando a máxima de Platão segundo a qual "todo o conhecimento é recordação", Bacon acrescenta outra: "Toda a novidade não passa de esquecimento". É esse o destino do rei de Ítaca.
Condenado a percorrer uma estrada muito sinuosa, Ulisses vê-se confrontado com múltiplos perigos, que são também possibilidades disfarçadas (...) A cada vez, Ulisses tem de encontrar uma solução sábia e firme para a situação difícil em que se encontra, na esperança de que aquela seja a última vez e sabendo que não o vai ser. Exploramos menos pela liberdade de escolher as coisas do que pela de as excluir.
Quando visita as almas do Mundo dos Mortos, Ulisses encontra Tirésias, o adivinho, que lhe diz que, se ultrapassar as dificuldades que se lhe depararem e não molestar o gado de Apolo, ele e a sua tripulação poderão regressar a casa sãos e salvos. Porém, de regresso à Ítaca, Tirésias vaticina que Ulisses irá "partir de novo". As palavras de Tirésias, como Dante as interpretou, acrescentam profundidade e um aspecto trágico à história do regresso, tornando-a de certo modo infinita (...) Ulisses (...) na Divina Comédia (...) diz:

(...) "não fostes feitos a viver quais brutos
mas a seguir virtude e conhecença"

Lançar âncora em qualquer porto sonolento; imitar a rotina dos animais que nascem, comem, procriam e morrem; ignorar a virtude e rejeitar o conhecimento: ao que parece, um regresso a Ítaca resumir-se-ia a isto. Para escapar a esse triste destino, Ulisses e os seus homens fazem-se ao mar naquilo a que Dante chama (...) um vôo louco; (...) o seu ânimo depressa se converte em lágrimas quando uma tempestade desaba sobre eles, um redemoinho se abre diante da proa e (...) mergulham em águas desconhecidas. (...) Porém, antes (...) que  (...) Poseidon (...) tivesse a sua vingança triunfante, recordemos que (...) Ulisses nunca desiste de querer saber o que está "retro al sol" - anseia por ver o que se encontra para lá do mundo conhecido pelos humanos, "il mondo sanza gente". Ulisses quer continuar a explorar.


Alberto Manguel - Diccionário de Lugares Imaginários

# 437



Quer nos desloquemos verdadeiramente ou em imaginação, quer partamos para o mundo com a mente e o coração de um peregrino ou confiemos na pretensão de a biblioteca (nas palavras de Borges) ser outro nome do Universo, somos animais migratórios. (...) Algo nos atrai para o outro lado do jardim, da rua,do rio, da montanha - como se o que temos aqui fosse apenas causa  (ou consequência) do que está além, e ainda mais além.
(...) sentimo-nos obrigados a partir à aventura, a encarar cada paragem não como um objectivo em si, mas como um novo ponto de partida, como um posto de observação onde nos podemos preparar para ir conhecer o novo espaço que fica quase ao nosso alcance, próximo do horizonte, no futuro, perguntando-nos o que pode acontecer se atravessarmos a linha que separa o mar do céu, nesse lugar aparentemente inconcebível onde cada um de nós dará por si modificador verificará que a paisagem também mudou.

Alberto Manguel - Diccionário de Lugares Imaginários

# 436



nem todos os lugares imaginários se consubstanciam em realidade. (...) são lugares que visitamos em pensamento mas não na realidade, embora sejam necessários para aquilo a que chamamos a condição humana. Estes lugares (...) constituem os alicerces da nossa crença na tangibilidade do mundo. A fé, religiosa ou poética, necessita de locais de residência (...) E para alcançar esses domínios, embora inexistentes, temos de viajar (...)  Muitas das viagens mais antigas são demandas do impossível

Alberto Manguel - Diccionário de Lugares Imaginários

# 435



Até ao século passado, ainda era possível imaginar a terra incognita em algumas regiões dispersas do mundo. Quando eu era pequeno, o globo que se encontrava em cima da minha secretária tinha manchas cor-de-rosa disseminadas que significavam que ali existiam lugares aparentemente nunca observados por olhos humanos e que me pareciam muito mais atraentes do que os países delimitado por traços e pontos (...) preferia inventar para as manchas cor-de-rosa vazias uma geografia que eu próprio concebera (...) Quando, poucos anos mais tarde, as novas tecnologias me privaram daquela liberdade, mesmo os escassos lugares anónimos se tornaram conhecidos e catalogados para sempre (...) Mas ainda havia a cartografia da imaginação. A nossa geografia imaginária é infinitamente mais vasta do que a do mundo material. Esta observação, por mais banal que seja, permite-  nos detectar a generosidade imensa de uma função humana vital: a de dar vida ao que não pode reclamar presença no mundo do volume e do peso. (...) os lugares imaginários da mente não carecem de materialidade para existir na consciência. A Utopia e o País das Maravilhas, o Castelo de Kafka e o Reino do Eldorado estão sempre presentes, embora nenhum atlas mostre a sua verdadeira localização. "Não está registado em nenhum mapa. Os lugares verdadeiros nunca o estão", escreveu Herman Melville depois de ver tantos lugares no mundo a que chamamos real.
É seguindo as geografias imaginárias que construímos o nosso mundo: o resto é apenas confirmação. (...) As coisas não imaginavas carecem de existência, como aqueles montáculos funerários turcos visíveis mas não vistos, até Schliemann imaginar que se tratava das ruínas de Tróia, ou aqueles muros degradados que só adquirem vida depois de cobertos de graffiti.

Alberto Manguel - Diccionário de Lugares Imaginários

# 434


Graças ao Google Earth, hoje em dia é possível ver nos nossos ecrãs todos os pormenores deste planeta. Não só o grande globo azul que os satélites
nos permitiram observar do espaço, confirmando a intuição de Élouard de que "la terre est bleue comme une orange" (...) Agora a tecnologia permite-nos ver florestas e vales, cidades e aldeias, quarteirões de casas e quintais. Do outro lado do mundo, quase podemos espreitar para a sala de alguém em Tombuctu ou espiar uma reunião de família em Tonga. Tornámos impossível zarpar rumo ao desconhecido, a não ser sob vigilância humana. Anulámos a privacidade.

Alberto Manguel - Diccionário de Lugares Imaginários