quinta-feira, 29 de março de 2018

# 431


não supunha que os hospitais tão claros, só reboco e metal, nem que sofrer fosse assim, o coração difícil de equilibrar que resiste, não resiste, resiste, sete horas nos relógios antigos e quantas horas nele, amarrotadas, torcidas

António Lobo Antunes - Sôbolos Rios que Vão

# 430


nem um grito apesar de tantos gritos, cada gesto que não fazia gritava, cada movimento de cabeça na almofada gritava, cada centímetro de pele gritava, que difícil esconder este medo

António Lobo Antunes - Sôbolos Rios que Vão

# 429


a certeza que não dormiria esta noite apesar do comprimido no copinho de plástico, o comprimido escorregou para se fundir numa prega do lençol e em vez do comprimido o carimbo do hospital impresso no pano, se o avô lhe emprestasse os óculos descobria o remédio, lembrou-se dos lençóis com ursinhos que tivera em catraio, todos os ursinhos de gorro e cachecol felicíssimos (...) graças aos ursinhos a doença nos antípodas, ganas de vestir-se e partir sob a chuva
- Foi um engano dos médicos
(...)
e no entanto apesar do engano dos médicos um aperto, um enjoo, uma dor que quase abranda permanecendo ali

António Lobo Antunes - Sôbolos Rios que Vão

# 428


- A minha mãe curava tudo com uma aspirina
convicto que tinha logrado um sorriso mais difícil de equilibrar que o coração sem que lhe admirassem o esforço, curava tudo com uma aspirina, dores de cabeça, anginas, medo de bichos, insônias, não punha o termómetro, encostava a bochecha à sua
- Estás óptimo
e por segundos uma doçura de perfume é um sabor de carne viva, a palavra filho a fazer sentido

António Lobo Antunes - Sôbolos Rios que Vão

# 427


o electrocardiograma a registar as lágrimas numa fita de papel


António Lobo Antunes - Sôbolos Rios que Vão

# 426


o coração difícil de equilibrar em segredo, não imaginava que coubessem tantas lágrimas naquilo, se ao menos caíssem por dentro em vez de molharem a cara no momento em que a anestesista fazia perguntas

António Lobo Antunes - Sôbolos Rios que Vão

# 425


o cheiro do seu nervoso anulava o cheiro do hospital sem anular o cheiro das compotas


António Lobo Antunes - Sôbolos Rios que Vão

# 424


daqui a pouco a noite e a miséria do seu corpo no escuro, a voz dele independente de si
- Não
e por quantas semanas continuaria a ter voz, por quantas semanas
-Não
até a garganta apodrecer por seu turno e quando a garganta apodrecida que ecos,


António Lobo Antunes - Sôbolos Rios que Vão

# 422


que misteriosa a vida, davam-lhe banho na selha da cozinha e o desconforto de estar nu à vista da empregada, pequeno, magro submisso tal como na enfermaria pequeno, magro e submisso de novo

António Lobo Antunes -Sôbolos Rios que Vão

segunda-feira, 26 de março de 2018

# 421


células podres do intestino a invadirem-no destruindo os pulmões, os ossos, o fígado e crianças vestidas de serafim com asas mal coladas nas costas, que terrível e cómica a morte, troça de ti mesmo, despreza-te, no livro de História as datas do nascimento e da agonia dos reis que não lhe faziam diferença por não serem as dele

António Lobo Antunes - Sôbolos Rios Que Vão

# 420


o nervoso jogou-lhe uma garra ao coração feito de pavor e lágrimas, difícil de equilibrar em segredo, nem um grito apesar de tantos gritos em si, cada gesto que não fazia gritava, cada movimento da cabeça gritava, cada pedaço da pele contra o lençol gritava

António Lobo Antunes - Sôbolos Rios Que Vão

# 419


que designação esquisita a seu respeito, cancro, que impensável morrer


António Lobo Antunes - Sôbolos Rios Que Vão

# 418


este corredor cheira à farmácia da vila onde contavam que dantes os lobos junto à escola no inverno, percebiam-se as marcas no chão e restos de vitelo iguais aos dele depois da cirurgia amanhã, uma interna espreitou da porta conforme a mãe antes de apagar a luz
- Quietinho

(...)

o número de criaturas, senhores, em que a mãe se tornava ao ir-se embora e nenhuma com ele ajudando-o a salvar-se da noite


António Lobo Antunes - Sôbolos Rios Que Vão

# 417


não estava no hospital em março, à chuva, estava em agosto na vila, se o mandassem fazer recados trocava de passeio antes de alcançar a moradia com a dona Lucrécia na cadeira de inválida ao alto dos degraus a acenar-lhe a bengala
- Aproxima-te rapaz
e ele sem ninguém que o protegesse tal como sem ninguém que o protegesse agora, a dona Lucrécia à espera no centro da enfermaria para onde o levavam

António Lobo Antunes - Sôbolos Rios Que Vão

# 416


o avô dobrou o jornal no sofá e nem o olhou sequer, quis pedir
- Não consegue fazer nada por mim?
e o mais que podia esperar era a concha da mão na orelha
- O quê?
e sobrancelhas juntas no sentido de ninguém
- Que disse ele?
de forma que o pássaro do seu medo continuava aos círculos, olha as raízes dos pés e os dedos que apertam o lençol, os pobres, aqueles que esperam o elevador deixaram a maçã entrar primeiro, fitaram a maca por um momento e esqueceram-se, achou impossível que não se recordassem dele

António Lobo Antunes - Sôbolos Rios Que Vão

# 415


a avó que morreu há tantos anos ali viva com ele, o avô defunto há mais tempo a ler o jornal com o seu aparelho de surdo, o silêncio do avô alarmou-o fazendo com que o ouriço se lhe dilatasse nas tripas arranhando, doendo, coloco-o numa placa de granito, bato com o martelo e a doença esmagada, alguém que não distinguia empurrava-lhe a maca corredor adiante, notava a chuva, caras, letreiros, a governanta do senhor vigário no alpendre enquanto pensava
- É o meu esquife que empurram

António Lobo Antunes - Sôbolos Rios Que Vão

# 414


Da janela do hospital em Lisboa não eram as pessoas que entravam nem os automóveis entre as árvores nem uma ambulância que via, era o comboio a seguir aos pinheiros, casas, mais pinheiros e a serra ao fundo com o nevoeiro afastando-a dele, era o pássaro do seu medo sem galho onde poisar a tremer os lábios das asas, o ouriço de um castanheiro dantes à entrada do quintal e hoje no interior de si a que o médico chamava cancro aumentando em silêncio, assim que o médico lhe chamou cancro os sinos da igreja começaram o dobre é um cortejo alongou-se na direcção do cemitério com a urna aberta e uma criança dentro

António Lobo Antunes - Sôbolos Rios Que Vão

domingo, 25 de março de 2018

# 413


Entretanto, até ao final do internamento ia sabendo notícias do Outro que eu fora pelas descrições de quem o tinha visto na névoa antiga, e então nomes, pessoas e casos voltaram a povoar-me a memória.


José Cardoso Pires - De Profundis, Valsa Lenta

# 412


Num golpe repentino tinha perdido a inteireza da fala, no mesmo golpe tinha perdido os valores da grafia e ficara analfabeto de mim e da vida. Subitamente também, retomara tudo isso mas foi preciso algum tempo para começar a ter consciência de tamanha felicidade.


José Cardoso Pires - De Profundis, Valsa Lenta

# 411


o corredor das portas abertas e das camas a meio sono deixou de ser a estrada sem limites que eu percorria nos tempos cegos. A sua brancura já não é de vazio e solidão nem de extensões de luz fria. Pelo contrário, é quase íntima, hospitalar, e, ponto importante, exibe doentes a desfilarem em parada de toilettes. Três ou quatro, não mais, e todos os dias os mesmos.
Olho-os. Passam por mim roupões acabados de estrear, chinelas de aconchegar sossegos; à saída duma porta, um infeliz de perna arrastada compõe o seu burguês casaco de quarto com alamares; mais adiante outro internado avança em robe com monograma e lenço de seda ao pescoço mas por razões que só a ele dizem respeito calça luvas de lã grosseiríssima; outro ainda, um tipo enorme de cabelo grisalho, mostra-se de peito aberto num quimono de judoca e calções colados à coxa, exibindo umas pernas ilustradas por adesivos que cobrem enxertos de artérias ou algo assim. Brilhos de presença e uniforme: desejo de sobreposição ao anonimato ou à marginalização para que nos empurra a doença?

José Cardoso Pires - De Profundis, Valsa Lenta

# 410



No escuro, junto a dois homens adormecidos, tento ver para trás do meridiano da morte que acabei de dobrar esta manhã mas só encontro névoa luminosa.


José Cardoso Pires - De Profundis, Valsa Lenta

# 409


Alguém me dá os parabéns como se tivesse sido eu o autor deste triunfo e um psiquiatra meu amigo expõe o fundamental da recuperação surpreendente, surpreendente, repetiu ele, que me tinha acontecido.

(...)

Sinto-me tomado de gratidão. Isto de alguém se recomeçar assim depois de nulo é algo que deslumbra e ultrapassa.


José Cardoso Pires - De Profundis, Valsa Lenta

# 408


Um tanto ao acaso, avancei para o lavatório e ao aproximar-me reconheci-me no espelho. Eu. Eu saído da névoa, a ir ao encontro de mim na superfície dum vidro emoldurado e com a sensação ou com a certeza (ah sim, com a certeza, a mais que certeza) de que encontrará a memória. Incrível, a memória tinha reaparecido, o coágulo de sangue, esse selo que me estrangulara o cérebro, diluira-se no segredo do corpo e eis-me livre, renascido, diante de dois estranhos que não paravam de improvisar malícias entre si.

José Cardoso Pires - De Profundis, Valsa Lenta

# 407


naquele quarto estavam dois candidatos à morte no maior dos carnavais. Dois passarões arruinados, pelo menos quanto ao aspecto. E eu, no meio de tanto riso, descobri (sem espanto, sem assombro, custa a crer) que acabara de me libertar duma doença mais que maldita, duma cegueira ou dum apagamento por onde andara sem norte e sem dias e que numa viragem sem aviso pessoas e luz, palavras e matéria, tudo tinha voltado à realidade. Existência palpável, o mundo deixara de ser anónimo.

José Cardoso Pires - De Profundis, Valsa Lenta

sexta-feira, 23 de março de 2018

# 406


Até que certa manhã acordo em claridade aberta com gargalhadas a crepitarem à minha volta. Dum momento para o outro, o sentido de presença. E tudo concreto, tudo vivo.

José Cardoso Pires - De Profundis, Valsa Lenta

# 405


Por cima de uma porta não sei onde havia um letreiro que me obrigava a um soletrar intrigado (...) Aquilo parecia-me uma grafia cirílica. Alfabeto eslavo?
Cada vez que passava lá com a Edite apontava-o sem mais nada e ela, já sem levantar os olhos, respondia BANHOS. Então sim, eu conseguia ler e reconhecia a palavra.
(...)
de tanto o estudar a sós e de o saber impossível o letreiro fez com que me interrogasse
sem exactidão de consciência é certo sem sobressalto
mas a interrogar-me
se não estaria a caminhar para a loucura.
Inacreditável. Eu, o Outro de mim, em viagem de passos perdidos e a interrogar-me se não estaria a caminhar para a loucura. E o caso é que, desconcertante ou não, a pergunta aconteceu. E para maior surpresa, não a esqueci. Loucura, caminho para a loucura, a questão chegou-me com uma insistência passageira mas no estado em que me encontrava o que seria para mim a loucura?

José Cardoso Pires - De Profundis, Valsa Lenta

# 404


Passos. Os passos dele: perdidos. Para a frente e para trás, perdidos.


José Cardoso Pires - De Profundis, Valsa Lenta

# 403


Corredor para a frente, corredor para trás, o Outro que se desdobrou de mim comporta-se naquele planeta como um figurante gratuito que o destino acrescentou à paisagem. Continuo a recordá-lo
não tem hora nem lugar é a impressão que dá
uma afabilidade incolor no trato com os médicos e com as enfermeiras que o acompanham
e calmo sempre calmo praticamente sem palavras mas de quando em quando com a luz discreta de um meio sorriso para manifestar presença ou como uma deferência para com as pessoas com quem se cruza

José Cardoso Pires - De Profundis, Valsa Lenta

domingo, 18 de março de 2018

# 402


as palavras que me chegavam vinham cegas. Sombras não havia nem podia haver numa claridade tão absorvente
(...)
não havia sombras não podia haver a não ser a do Outro que andava por lá o Outro que afinal não era mais do que uma sombra saída de algures de mim e a deslocar-se por si só não se sabe em que direcção nem com que objectivo
uma sombra branca corrida no branco
como foi que desse apagamento consegui reter alguma luzinha a brilhar até agora é coisa que ainda estou para entender mas retive retive mesmo? retive -
-melhor assim.
Verdade, melhor assim.
Paredes mansas, as tais paredes em alvura-pérola; por entre elas, os Söns, as figuras, o tempo, tudo num deslizar suave, sem densidade. Eu, pessoa de coisíssima nenhuma, cumpria as tardes de hospital num vaguear inocente.

José Cardoso Pires - De Profundis, Valsa Lenta

# 401


Andava por ali, transposto para qualquer Alguém de mim num território satélite sem vida. Ainda que árida, a atmosfera era leve e luminosa e eu transitava pelas pessoas com um longo olhar sem rumo. Um animal a planar dentro duma redoma de vidro, é como me imagino naquela altura.

José Cardoso Pires - De Profundis, Valsa Lenta

# 400


a desmemória não só o isolou da realidade objectiva como o destituiu, pode dizer-se, de sentimentos. Perdeu os estímulos de aproximação porque, sem a consciência da identidade que nos posiciona e nos define num framework de experiências e de valores, ninguém pode ser sensível à valia humana do semelhante. As suas virtudes ou os seus males só podem ser reconhecidos como significantes sentimentais em contraponto com a consciência da nossa identidade, isto é, com a tradução da comunicação que praticamos com a sociedade e com a nossa memória cultural. A ele tal coisa estava-lhe vedada, memória onde tu já ias. Daí a total indiferença em que navegava à tona das comoções e dos afectos, uma indiferença extrema que, sucedesse o que sucedesse, não o levava a perturbar nem ao de leve a disciplina ambiente. Na verdade, não sabia de todo onde se encontrava, a razão era essa.

José Cardoso Pires - De Profundis, Valsa Lenta

# 399


Está à mercê de um coágulo que lhe trava a circulação do cérebro e anuncia um fim assustador mas ele desconhece isso, não pressente sequer. Está distante, está longe.

José Cardoso Pires - De Profundis, Valsa Lenta

# 398



Durante a travessia das trevas brancas os diálogos com a Edite foram em grande parte uma busca de referências, um inquérito em total inconsciência na tentativa de se recapitular para voltar a ser um indivíduo com passado.

José Cardoso Pires - De Profundis, Valsa Lenta

# 397


Os nomes. A preocupação de se reconhecer vivo, identificando-se pela identificação dos outros.

José Cardoso Pires - De Profundis, Valsa Lenta

# 396


Sem nome e sem assinatura este que eu sou entre paredes dum hospital encontra-se numa paisagem anônima com gente anónima (o pessoal, os visitantes). Sem nome, vejam só. E contudo, "os nomes penetram-nos até aos ossos", afirmava Hemingway, esse viajante das mortes, em The Garden of Eden. 

José Cardoso Pires - De Profundis, Valsa Lenta

# 395


Assumir a observação que pressupõe a ironia com a captação de sinais que ela requer não me parece fácil nas condições em que o meu Outro divagava. No entanto, muito para com ele e para comigo, houve pelo menos uma vez em que essa intenção teve lugar. Com alguma clareza - ou quase - e de tal modo que ainda hoje tenho como certo que mesmo um farrapo de indivíduo a despojar-se de memória (e portanto de imaginação) podem despontar por vezes fragmentos de ironia como fragmentos culturais, se assim lhes é possível chamar, que são resíduos do passado que ele apagou.
Será uma ironia coitada, não digo que não, mas de qualquer modo uma ironia. Um esforço de resposta muito para ele, muito para se compensar da situação de desvantagem em que se pressente. Um esbracejar do seu lado crítico, direi agora, um esbracejar. Um iludir o caos da irreflexão.
A prova dum impulso de afirmação deste tipo está na minha resposta ao exercício que um dia me propôs a neurologista que dirigia o meu tratamento ("Onze menos nove quantos são?") apresentando-lhe a primeira solução - engenhosa, pretendia eu - que me veio à cabeça: "Nada, senhora doutora. Qualquer coisa noves fora é nada.""

José Cardoso Pires - De Profundis, Valsa Lenta

# 394


Se não o entendiam quando perguntava esquecia e passava adiante (remetia-se ao seu horizonte descampado). Mas quando era perguntado (nos exames iniciais da memória, é daí que me vem essa lembrança) entendia ou intuía que o estavam a experimentar em perspicácias ingénuas e com o seu quê de ridículo. Eram um estendal de desperdícios mais que vistos e sabidos, aqueles testes. Um jogo de faz-de-conta frustrado logo à partida, pensaria ele naquela altura e quem sabe se não sorriria tristemente por dentro. No fundo, essa atitude não era mais que a costumada desconfiança do doente em terreno de risco e de valores desconhecidos, a sempre prevenção contra a subestima ou a humilhação ao julgar-se avaliado por um teste primaríssimo em que colaborava, que remédio, com uma complacência resignada e até com uma sombra de ironia.

José Cardoso Pires - De Profundis, Valsa Lenta

# 393


Ele percebe que o estão a investigar, por mais anulado que se encontre não se considera tão à margem como isso. Percebe, não tenho dúvida (recordo essa minha reacção no primeiro interrogatório) mas o que ele ignora é que já não identifica os objectos que lhe apresentam: um lenço, um anel, a moeda tirada ao acaso do bolso da bata, na prática objectos mais que simples da circulação comum, e principalmente relógios, relógios de pulso, os ponteiros e a leitura das horas. Pois, relógios.
O Outro de mim naturalmente que os conhece como peças, instrumentos, sem interior, sem razão, mas eu diria que só de vista porque os isolara de referências. Exactamente como lhe acontecia com as pessoas que outrora lhe tinham sido mais próximas.

José Cardoso Pires - De Profundis, Valsa Lenta

# 392


Deixaram-no atrás de uma janela sem paisagem, em tempo velado, oco.

José Cardoso Pires - De Profundis, Valsa Lenta

# 391


Deve ser uma abstracção nebulosa estar-se assim, numa ilha de náufragos, preso ao soro que nos chega por um fio ligado a uma hipótese de vida. Três náufragos ao todo: não esquecer que naquele quarto há ainda dois vultos tão nulos que os torna como ausentes. Insisto nisto porque aos olhos dele essas criaturas devem ser duas sombras, pouco mais. Duas sombras espalmadas em dois leitos de hospital, a observá-lo para o decifrarem, saber de quem se trata, qual o seu porquê e o seu rumo.

José Cardoso Pires - De Profundis, Valsa Lenta

# 390


no quarto que lhe tinham destinado havia dois vultos a espiá-lo em duas camas. Viam-no também sob lençóis mas de rosto ao alto e a sorrir. A sorrir? Seria um traço pálido na palidez geral que se supôs dirigido à enfermeira que o estava a ligar ao soro, embora não a olhasse sequer. Ou um sorriso para com ele e mais ninguém, outra hipótese. De qualquer maneira, estava imóvel e a sorrir, imagine-se. Assim o viam os dois doentes com quem ele ia ficar e assim o estou eu a descrever, passados dois anos sobre essa hora: branco, branco, em luz gelada e com a mulher à cabeceira a segurar-lhe a mão. Preso a ela mas todo voltado para a distância.
Assim, também, o foi encontrar uma jovem médica que o veio observar com as primeiras perguntas no tom de quem vem com recado pensado.
Perguntas a aviar, é bom que se diga, pelo menos foi o que lhe pareceu a ele uma abordagem daquelas, e como tal, com respostas prontas é que a devia despachar. Estropiavas ou não, respostas prontas e o rosto eternamente apontado para uma vastidão qualquer.
Seria realmente uma vastidão, um espaço ermo, para onde ele olhava? Pouco importa. Horizonte, interrogação ou nada, era nessa direcção que ele estava a responder ao exame e infelizmente com o descaso e a irresponsabilidade que eram de prever, parecia anotar a médica pela maneira de o escutar, pelo insólito dos desacertos com que ele correspondia ao diagnóstico que lhe tinha sido atribuído, confirmava a médica com o silêncio do olhar, claro, tudo certo, tudo conforme, "agora", despediu-se ela, "o que é preciso é pôr-se bom depressa para voltar a escrever. De acordo?"
Escrever?
O que restaria de mim no homem que ficou para ali estendido à espera de coisa nenhuma?


José Cardoso Pires - De Profundis, Valsa Lenta

# 389



O relatório neurológico foi terminante: acidente vascular cerebral de gravidade muito acentuada, um coágulo de sangue que tinha subido (do coração?) até à zona nobre do cérebro, bloqueando duramente a artéria. Não era um problema hemorrágico, antes fosse, e por isso não havia o recurso à cirurgia com largas perspectivas de solução, explicou à Edite um especialista do Serviço de Neurologia. Assim, acrescentou ele, o caso apresentava-se bastante difícil, um caso de isquémia com recuperação lenta e frequentemente incompleta. Do ponto de vista motor, nada que justificasse preocupações, o doente bastava-se a si próprio. Mas o centro da fala e da escrita estava profundamente afectado e podia conduzir a uma sobrevivência em incomunicabilidade total.
Incomunicabilidade, pois. Incomunicabilidade total. Nem voz, nem escrita e nem leitura tão-pouco.
Morte cerebral, foi com esta expressão que a Agência Lusa passou a notícia à imprensa para o outro lado dos muros do Hospital de Santa Maria. Morte branca, aponto eu ao alto desta página em que estou a reconstruir passo a passo esse Outro que, de mão na mão com a Edite, se encaminha para o quarto onde vai ser internado.
Vai sem ver, percebe-se. Vai, foi. Seguiu. E quando lá chegou não sei se já estava entregue por inteiro à sem-vontade que o alheava do que acontecia nele e à volta dele, não sei, não faço ideia.

José Cardoso Pires - De Profundis, Valsa Lenta

sábado, 17 de março de 2018

# 388


Desse momento em diante vi-o, de corredor em corredor, a ser conduzido aos puzzles da tecnologia clínica, chapa a chapa, registo a registo, análises, electrocardiografias, exames da fala é da escrita, um TAC., uma inspecção às carótidas, mas o que é que eu estou a fazer aqui, perguntava ele quando o deixavam sozinho com a mulher.
Se nessa altura ainda falava com clareza ou se já tinha começado a desmantelar as palavras com o silabar consonântico que toda a gente fingia ignorar, não sei, não posso dizer. Mas por intuição ou pelo que quer que fosse ele devia ter alguma percepção dessa afasia porque muitas vezes cortava a frase ou parava de se exprimir, fazendo um gesto de desistência com um sorriso de resignação. Deixem, não vale a pena, era o que aquilo significava. Dava a ideia de que por enquanto sabia o que pretendia comunicar mas que já não comandava as palavras.
Continuo a segui-lo. A princípio houve uma ou outra situação em que nos confundimos e fomos um só. Situações raríssimas, devo acrescentar, breves clarões de consciência. Mas em menos de nada já ele se tinha perdido de mim e ia hospital fora a arrastar uma névoa.

José Cardoso Pires - De Profundis, Valsa Lenta

# 387


Ouvir e perceber enquanto ouvia mas apagar prontamente, era o traçado em que ele se movia. Ouvir e apagar logo-logo. Apagar. E ver, ver também contava. Ver pessoas (figuras) através dum vidro mudo e perdê-las acto contínuo. Tudo sem angústia, como quem preenchesse o tempo numa serenidade terminal. Como quem, na desertificação que o invadia, fosse avançando para a morte cerebral num cenário de contornos indiferentes.

José Cardoso Pires - De Profundis, Valsa Lenta

# 386


Que eu saiba, ele ao princípio sabia-se doente. Ou teria uma percepção limiar da impossibilidade de se conjugar com os outros, uma impossibilidade com a qual convivia numa aceitação natural.

José Cardoso Pires - De Profundis, Valsa Lenta

# 385


Para ele, agora ou ontem tudo era outrora, mundo alheio ou como tal. E desinteresse. O constante e desinteresse do homem desabitado de pessoas e de lugares, de tempo e de sentimentos.

José Cardoso Pires. - De Profundis, Valsa Lenta

# 384


Sem memória esvai-se o presente que simultaneamente já é passado morto. Perde-se a vida anterior. E a interior, bem entendido, porque sem referências do passado morrem os afectos e os laços sentimentais. E a noção do tempo que relaciona as imagens do passado e que lhes dá a luz e o tom que as datam e as tornam significantes, também isso. Verdade, também isso se perde porque a memória, aprendi por mim, é indispensável para que o tempo não só possa ser medido como sentido.

José Cardoso Pires - De Profundis, Valsa Lenta

# 383


A partir de então tudo o que sei é que me pus ao espelho da casa de banho a barbear-me com a passividade de quem está a barbear um ausente - e foi ali.
Sim, foi ali. Tanto quanto é possível localizar-se uma fracção mais que secreta de vida, foi naquele lugar e naquele instante que eu, frente a frente com a minha imagem no espelho mas já desligado dela, me transfiri para um Outro sem nome e sem memória e por conseguinte incapaz da menor relação passado-presente, de imagem-objecto, do eu com outro alguém ou do real com a visão que o abstracto contém.

José Cardoso Pires - De Profundis, Valsa Lenta

# 382


Espantoso como bruscamente o meu eu se transformou ali noutro alguém, noutro personagem menos imediato e menos concreto.
Nesta introdução à perda de identidade que um transtorno do cérebro tinha acabado de desencadear, o que me parece desde logo implacável e irreversível é a precisão com que em tão rápido espaço de tempo fui desapossado das minhas relações com o mundo e comigo próprio. Como se acabasse de dar início a um processo de despersonalização, eu tinha-me transferido para um sujeito na terceira pessoa

José Cardoso Pires - De Profundis, Valsa Lenta

# 381


Acho que dei os bons-dias e que, embora calmo, trazia uma palidez de cera. Foi numa manhã cinzenta que nunca mais esquecerei, as pessoas a falarem não sei de quê e eu a correr a sala com o olhar, o chão, as paredes, o enorme plátano por trás da varanda. Parei na chávena de chá e fiquei. Sinto-me mal, nunca me senti assim, murmurei numa fria tranquilidade.
Silêncio brusco. Eu e a chávena debaixo dos meus olhos. De repente viro-me para a minha mulher: "Como é que tu te chamas?"

José Cardoso Pires - De Profundis, Valsa Lenta