segunda-feira, 23 de setembro de 2013

# 107



Confúcio avançou um passo, fez uma vénia, ainda que Kien fosse mais alto do que ele umas duas cabeças, e deu-lhe o seguinte conselho em tom confidencial:
- Observa a idiossincrasia das pessoas, considera os móbiles das suas acções, examina as coisas que as satisfazem. Quem poderá ocultar-se?


Elias Canetti - Auto-de-Fé

domingo, 22 de setembro de 2013

# 106



Nos vastos salões da sua biblioteca, recomeçou as suas idas e vindas e invocou Confúcio. Este desceu da parede em frente, tranquilo e decidido, o que não representa mérito nenhum, quando se tem atrás de si uma vida já de séculos. Kien aproximou-se dele em largas passadas, esquecendo o respeito que lhe devia. A sua agitação contrastava estranhamente com a atitude do sábio chinês.
- Creio ter uma certa cultura! - gritou-lhe, a uns cinco passos de distância. E também algum tacto! Têm querido convencer-me de que a cultura e o tacto se encontram sempre juntos e que este é inconcebível sem aquela. Quem quis convencer-me disso? Tu! - Não vacilou em tratar Confúcio por tu. - E de repente, aparece uma pessoa sem um mínimo de cultura, mas com mais tacto, coração, dignidade e calor humano do que eu, tu e toda a tua escola de sábios junta!


Elias Canetti - Auto-de-Fé

# 105



Aprendemos a identificar-nos com todo o tipo de pessoas. Uma pessoa apanha o gosto por esse vaivém perpétuo e confunde-se com as personagens que lhe agradam.


Elias Canetti - Auto-de-Fé

sábado, 21 de setembro de 2013

# 104



Um sonho perde o seu poder quando isolamos os seus componentes.


Elias Canetti - Auto-de-Fé

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

# 103



Todo o ser humano necessita de uma pátria, ainda que não seja como a concebem esses patrioteiros primitivos ou qualquer religião, antecipação insípida de uma pátria ultraterrena. Não, uma pátria em que o solo, o trabalho, os amigos, as diversões e o espaço espiritual confluam num todo organizado, numa espécie de cosmos próprio. A melhor definição de pátria é uma biblioteca.


Elias Canetti - Auto-de-Fé

# 102



A vida quotidiana é uma teia superficial de mentiras.


Elias Canetti - Auto-de-Fé

sábado, 7 de setembro de 2013

# 101



Qualquer destino, por mais longo e complicado que seja, na realidade consta de um só momento: o momento em que o homem fica a saber para sempre quem é. (...) Compreendeu que um destino não é melhor que outro, mas que todos os homens têm de acatar o que trazem dentro de si. Compreendeu que as divisas e o uniforme já o estorvavam. Compreendeu o seu íntimo destino de lobo, e não de cão gregário; compreendeu que o outro era ele. Amanhecia na ilimitada planície. Cruz atirou o quépi ao chão, gritou que não consentia no crime da morte de um valente e pôs-se a combater contra os soldados, juntamente com o desertor Martín Fierro.


Jorge Luís Borges - Biografia de Tadeo Isidoro Cruz (1829-1874) - O Aleph


# 100



Hoje estou muito lúcido, a febre deve ter baixado, já não tenho pesadelos. Falei-te nos pesadelos? Se já o fiz, não deites nada fora, a vida, especialmente a vida dos heróis, é feita de mil coisas, nomeadamente de pesadelos (...) Dormi muito, devo ter dormido muito. Ou talvez não...às vezes, num minuto de sono há anos de permeio (...) Por vezes as recordações parecem feitas de gelatina, as coisas pegam-se umas às outras, como se as tivéssemos desossado, derretem-se, vês um rosto...espera, diz-te ele, cacei-te, não me reconheces, pateta?, sou eu, não vês? (...) sorri como se estivesse à tua espera para te contar uma piada...e também tu sorris, é estranho encontrarem-se assim, passado tanto tempo, e ele sempre ali, no mesmo sítio, naquela lívida madrugada. Será possível que tivesse ali ficado? É possível. Os homens não se mexem, ficam como que encantados em momentos fixos, só que não o sabem, a gente imagina um fluir contínuo que aos poucos se evapora, mas não, algures no espaço esse momento mantém-se fixo no gesto e em tudo o mais, como por encantamento, numa fotografia sem chapa. É preciso saber vê-la, mas existe, digo-to eu.


Antonio Tabucchi - Tristano Morre

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

# 99



O senhor Palomar caminha ao longo de uma praia solitária. (...) Uma mulher jovem está estendida na areia, apanhando sol com os seios descobertos. Palomar, homem discreto, volve o seu olhar para o horizonte marinho. (...) 
No entanto - pensa ele (...) - eu, assim fazendo, ostento uma recusa de ver, eu próprio acabo por reforçar a convenção que considera ilícita a vista do seio, ou seja, instituo uma espécie de soutien mental, suspenso entre os meus olhos e aquele peito (...) Em suma, o meu não olhar pressupõe que estou a pensar naquela nudez, que me preocupo com ela, o que no fundo é ainda uma atitude indiscreta e retrógrada.
(...) Palomar volta a passar diante daquela banhista e desta vez mantém o olhar fixo à sua frente, de modo a que a este aflore com uma imparcial uniformidade a espuma das ondas que recuam, os cascos dos barcos postos em seco, a toalha turca estendida na areia, a pródiga lua cheia de pele mais clara com a auréola castanha do mamilo, o perfil da costa na bruma que contrasta, cinzenta, contra o céu.
Aí está - reflecte ele satisfeito consigo próprio (...) - consegui fazer com que o seio fosse  completamente absorvido pela paisagem e com que o meu olhar não tivesse mais peso do que o olhar de uma gaivota ou de um badejo.
Mas será justo proceder assim? - reflecte ainda Palomar. - Ou isso não será rebaixar a pessoa humana ao nível das coisas, (...) considerar como um objecto aquilo que na pessoa é específico do sexo feminino? Não estarei eu talvez a perpetuar o velho hábito da supremacia masculina, enquistada através dos tempos numa insolência rotineira?
Volta-se e regressa sobre os seus próprios passos. Agora, ao obrigar o seu olhar a percorrer a praia com imparcial objectividade, procede de modo a que, mal o peito da mulher entre no seu campo visual, se note uma descontinuidade, um desvio, quase um sobressalto. (...) 
Creio que assim a minha posição resulta bem clara - pensa Palomar - sem qualquer possibilidade de haver mal-entendidos. E, no entanto, este sobrevoar do olhar não poderia acabar por ser uma atitude de superioridade, um subestimar daquilo que um seio é e daquilo que significa (...)? Lá estou eu outra vez a relegar o seio para a penumbra em que foi mantido por séculos de pudícia sexo-maníaca e de pecado de concupiscência...
Semelhante interpretação vai contra as melhores intenções de Palomar (...)
Faz meia-volta. Com passos decididos, encaminha-se uma vez mais na direcção da mulher estendida ao sol. Desta vez o seu olhar, lambendo voluptuosamente a paisagem, deter-se-á sobre os seios com especial atenção, mas apressar-se-à a considerá-los como parte de um arrebatamento de benevolência e de gratidão pelo todo, pelo sol e pelo céu, pelos pinheiros inclinados, pela duna e a areia e os escolhos e as núvens e as algas, pelo cosmos que gira em torno daqueles cumes aureolados.
Tanto deveria bastar para tranquilizar definitivamente a banhista (...) Mas assim que ele volta a aproximar-se, ei-la que se levanta de repente, cobrindo-se e bufando aborrecida, afastando-se e encolhendo enfastiadamente os ombros, como se estivesse a fugir às molestas insistências de um sátiro.
O peso morto de uma tradição de maus costumes não permite que se apreciem com a devida justiça as intenções mais iluminadas, conclui amargamente o senhor Palomar.


Italo Calvino - O Seio Nu - O Senhor Palomar

# 98



Desde há dias que Riba se interessa por tudo o que gire à volta do tema dos hikikomori, que são autistas informáticos, jovens japoneses que, para evitar a pressão exterior, reagem com um completo retraimento social. De facto, a palavra japonesa hikikomori significa isolamento. Fecham-se num quarto da casa dos pais durante períodos de tempo prolongados, geralmente anos. Sentem-se tristes e quase não têm amigos, e a grande maioria dorme ou deita-se ao longo do dia, e vê televisão ou concentra-se no computador durante a noite. Riba interessa-se muito pelo tema, porque desde que deixou a editora e o álcool está a fechar-se em si mesmo e a converter-se, com efeito, num misantropo japonês, num hikikomori.
- Vou a Dublin a um funeral pela era da imprensa, pela era dourada de Gutenberg - diz ele a Celia.
Não sabe como foi, mas saiu-lhe de dentro. Ela olha-o como se quisesse atravessá-lo com os olhos. Silêncio. Inquietação. Rectifica, antes que ela se ponha a gritar.
- A ver se entendes. O funeral, sempre demorado, da literatura como arte em perigo. Embora, na realidade, a pergunta devesse ser: qual perigo?
Ele mesmo nota que se meteu numa embrulhada.
- Compreender-te-ia muito bem - prossegue -se me perguntasses que perigo. Porque, de facto, o que mais me interessa desse perigo é a conotação literária que tem.
Suspeita de que será agora que a sua mulher irá libertar a sua alma irada, e acontece o contrário (...) Celia olha-o, sorri-lhe, pergunta-lhe se, apesar dos dias que passaram, se recorda de ter pedido para alugar o filme de David Cronemberg que ainda não viu. Mostra-lhe o DVD de Spider, o filme acabado de alugar, e propõe-lhe carinhosamente que o vejam antes do jantar.
Com efeito, gosta de Cronemberg, um dos últimos realizadores que restam ao cinema. Mas parece-lhe tudo algo estranho, porque nunca lhe pediu para ver esse filme em casa. Dá uma olhadela ao DVD e lê que o filme trata "da incomunicabilidade de um solitário com um mundo inóspito".
- Sou eu? - pergunta.


Enrique Vila-Matas - Dublinesca