domingo, 26 de setembro de 2021

levar os nossos mortos para a terra de onde viemos (# 499)

 

o modo como nos desfazemos dos mortos nunca foi objecto de discussão, foi algo que sempre fizemos, com base numa necessidade que ninguém consegue explicar mas que toda a gente conhece: se o teu pai falecer no jardim num ventoso domingo de Outono, vais carregá-lo para dentro de casa; se não for possível, pelo menos vais cobri-lo com uma manta. Mas este impulso não é o único que temos em relação aos mortos. Não menos evidente do que o impulso de ocultarmos os corpos é o facto de os colocarmos ao nível do solo o mais rapidamente possível. É quase inconcebível um hospital que transporte os seus mortos para cima, que coloque as suas salas de autópsia e de cadáveres nos andares mais altos. Os mortos são colocados o mais perto possível do solo. E aplica-se o mesmo princípio a quem cuida deles; uma companhia de seguros pode muito bem ter as suas instalações no oitavo andar, mas não uma funerária. Todas as funerárias funcionam tão perto do nível da rua quanto possível. Não é fácil explicar porque as coisas são assim; poderíamos cair na tentação de acreditar que isso se baseou numa antiga convenção que inicialmente tinha uma finalidade prática, como o facto de a caveser fria e, portanto, mais adequada para conservar os corpos, e que este sistema durou até à nossa época de refrigeradores e câmaras frigoríficas, não fosse a ideia de transportar corpos por edifícios acima antinatural, como se altura e morte fossem mutuamente incompatíveis. Como se tivéssemos algum tipo de instinto ctónico, algo bem dentro de nós que nos instiga a levar os nossos mortos para a terra de onde viemos.


Karl Ove Knausgard - A Morte do Pai 

porquê este desconforto perante um cadáver? (# 498)

 

O número de mortos mencionado todos os dias nos jornais ou exibido nas notícias televisivas varia um pouco conforme as circunstâncias, mas a média anual tende a ser mais ou menos constante, e, como se trata, de um assunto divulgado por tantos meios de comunicação, é quase impossível de ignorar. Esse tipo de morte, no entanto, não parece constituir uma ameaça. Pelo contrário, é algo que queremos é que pagamos alegremente para ver. Se acrescentarmos a enorme quantidade de mortos que a ficção produz, torna-se ainda mais difícil de entender o sistema que mantém os mortos longe do nosso olhar. Se o fenómeno da morte não nos assusta, porquê este desconforto perante um cadáver? Ou isto significa que há dois tipos de morte, ou que há uma contradição entre o nosso conceito de morte e a morte como ela realmente é, o que na verdade se resume ao mesmo: o que importa neste contexto é que o nosso conceito de morte está tão enraizado na nossa consciência que não só ficamos abalados quando verificamos que a realidade se afasta dele, como também tentamos ocultar isso de todas as formas ao nosso alcance. 


Karl Ove Knausgard - A Morte do Pai

arte da troca de impressões (# 497)

 

Todas estas zonas potencialmente criativas dos nossos encontros, todos estes espaços temporais em que, por vezes, temos a sensação de que o “acaso produtivo” e toda a informação que cruzamos é tão valiosa que não podemos prescindir de nada, originam momentos que nos levam a acreditar na arte da troca de impressões e, além disso, a compreender que esta arte pode ser mais intensa como experiência do que como imagem.

Enrique Vila-Matas - Marienbad Eléctrico

uma amizade (# 496)

 

Para mim, uma amizade é inconcebível se não se tiver em alta estima a pessoa amiga, se não a admirarmos, ainda que haja nuances. Porque é-se amigo de alguém por aquilo que este faz, por aquilo que ele é, pela forma como age para viver no mundo, e também por não saber como agir para viver no mundo. Esta admiração, como nos disse o próprio Montaigne, advém, na realidade, de um profundo respeito para com o outro; tê-lo enobrece a pessoa amiga, realça-a, eleva-a a uma posição sempre superior à nossa, o que, no fundo, nos faz muito bem.


Enrique Vila-Matas - Marienbad Eléctrico

Acreditar (# 495)

 

Nada nos é mais próximo do que esta declaração de Duchamp:”Gosto do verbo acreditar. Geralmente, quando alguém diz sei, não sabe, acredita. acredito que a arte é a única actividade em que o homem enquanto tal se manifesta como verdadeiro indivíduo, como ser capaz de ultrapassar a condição animal, porque a arte é uma saída para regiões não dominadas pelo tempo e pelo espaço. Viver é acreditar; pelo menos, é nisso que eu acredito.”


Enrique Vila-Matas - Marienbad Eléctrico

citações literárias distorcidas (# 494)

 

a minha literatura levara até ao limite a utilização de citações literárias distorcidas para que, entre outras coisas, a minha falsa erudição funcionasse como uma sintaxe.

Enrique Vila-Matas - Marienbad Eléctrico

sábado, 25 de setembro de 2021

só a literatura é verdadeiramente transcendente (# 493)

 

O mundo é uma passagem, e esta é a nossa vida, vem nos livros. Só vivemos realmente à medida que vamos lendo a nossa história e a transcendemos. Porque só a literatura é verdadeiramente transcendente, nos faz descobrir os outros e perguntarmo-nos como é possível que os signos numa tábua de argila, os signos de uma pluma ou de um lápis possam criar uma pessoa (um Quixote, um Gregor Samsa, uma Beatriz, um Jacob von Guten, um Fallstaff, uma Anna Karenina) cuja substância excede, na sua realidade, na sua longevidade personificada, a própria vida.


Enrique Vila-Matas - Marienbad Eléctrico

a literatura permite pensar o que existe, (# 492)

 

a literatura permite pensar o que existe, mas também o que se anuncia e ainda não aconteceu.


Enrique Vila-Matas - Marienbad Elétrico

um quarto é o espaço central a toda a tragédia (# 491)

 

Não é para me justificar, mas é lógica, esta atracção por este tipo de quarto único, de espaço fechado. É o estilo de quarto que atrai por aquilo que basicamente representa, pois é o lugar mítico onde se desenrola o grande drama humano, não isento, algumas vezes, de luz. No fim de contas, um quarto é o espaço central a toda a tragédia (…) Um quarto fechado é, provavelmente, como diz um amigo meu, o preço a pagar para ver a luminosidade. E foi o meu lugar preferido para descobrir a minha vida dentro dos textos que lia.

Enrique Vila-Matas - Marienbad Eléctrico

Eu sou um cineasta sem obra (# 490)

 Eu sou um cineasta sem obra, que permanece fiel à liberdade narrativa dos anos sessenta que tanto me seduziram não minha juventude. 

Como cineasta secreto, imagino sequências, crio cenas para uma futura antologia de cinema invisível.


Enrique Vila-Matas - Marienbad Eléctrico 

é já uma narrativa em miniatura (# 489)

 

cada pormenor de um lugar que prenda a nossa atenção é já uma narrativa em miniatura e, portanto, todo o romance é, de certo modo, infinito.


Enrique Vila-Matas - Marienbad Eléctrico