terça-feira, 23 de julho de 2013

# 50



(...) Queria contar-vos uma coisa que se passou há uns tempos. Parece-me que estou a tentar provar alguma coisa, e talvez consiga se puder contar-vos exactamente como isto se passou. Passou-se há uns meses mas ainda continua. Pode dizer-se que sim. Mas vai fazer-nos sentir envergonhados quando falamos de amor como se soubéssemos do que falamos.
(...)
- Eu estava de prevenção nessa noite. Foi em Maio ou em Junho. A Terri e eu tínhamo-nos acabado de sentar para comer quando ligaram do hospital. Tinha havido um acidente na auto-estrada. Um miúdo bêbedo, um adolescente, tinha espetado a carrinha do pai contra um carro com caravana e dois velhotes lá dentro. Ambos tinham mais de setenta anos. O miúdo tinha dezoito ou dezanove e estava bêbedo quando o trouxeram. Tinha levado com o volante no esterno e tinha morrido quase instantaneamente. Mas os velhos ainda estavam vivos, embora estivessem quase mortos. Tinham fracturas múltiplas e contusões, lacerações, enfim, e cada um deles tinha um traumatismo craneano. Estavam em mau estado, acreditem em mim. E tinham, claro, o peso da idade. Ela estava ainda pior do que ele. Tinha o baço perfurado e, para além disso, tinha as rótulas dos dois joelhos partidas. Mas ambos usavam o cinto de segurança que, sabe Deus, foi a única coisa que lhes valeu.
(...)
Eu olhei uma vez para o casal e disse à enfermeira das urgências para ir imediatamente chamar um neurologista e um ortopedista. Vou tentar abreviar a história. Os outros médicos apareceram, e levámos o casal para a sala de operações e trabalhámos neles quase toda a noite. Deviam ter uma reserva de vida incrível, aqueles velhos, por vezes acontece. Fizemos tudo o que podia ser feito e, pela manhã, demos-lhes cinquenta por cento de hipóteses, talvez um pouco menos, talvez trinta por cento para a mulher. Chamava-se Anna Gates e era uma mulher e peras. Ainda estavam vivos na manhã seguinte e levámo-los para a Unidade de Cuidados Intensivos, onde podíamos monitorizá-los vinte e quatro horas por dia e mantê-los sob vigilância. Estiveram nos Cuidados Intensivos durante duas semanas, talvez mais, antes de a situação estabilizar e podermos transferi-los para os quartos privados.
(...)
- Quando finalmente ficaram livres de perigo, conseguimos tirá-los dos Cuidados Intensivos, depois de percebermos que iam sobreviver. Eu apareci para os visitar todos os dias, às vezes duas vezes por dia se passasse por lá noutras rondas. Estavam ambos cobertos de gesso e ligaduras dos pés à cabeça. Já devem ter visto nos filmes, se é que ainda não viram na realidade. Eles estavam mesmo cobertos dos pés à cabeça com gesso e ligaduras, pá, mesmo dos pés à cabeça. Pareciam-se com aqueles actores a fingir, nos filmes, depois de um grande desastre. Só que neste caso era real. As cabeças estavam embrulhadas em ligaduras - tinham buracos para os olhos e um espaço para as bocas e os narizes. A Anna Gates também tinha as pernas elevadas. Estava pior do que ele, já vos disse. Estiveram os dois a soro e a glucose durante uns tempos. Bom, o Henry Gates foi quem esteve mais tempo deprimido. Continuou muito deprimido mesmo quando soube que a sua mulher ia sobreviver e recuperar. Não só por causa do acidente, embora este o tenha afectado. Ali estás tu um minuto, sabem, tudo fino e etc., de repente, bum!, estás a olhar para o abismo. E regressas à vida. É como se fosse um milagre. Mas ficas marcado. Ficas. Um dia eu estava sentado numa cadeira ao lado da cama dele e ele descreveu, devagar, falando pelo buraco da boca e por isso às vezes eu tinha de aproximar o meu rosto do dele para o conseguir ouvir, contou-me o que tinha visto, o que tinha sentido quando o carro daquele miúdo atravessou a linha divisória da estrada para o seu lado e continuou em frente. Ele disse-me que soube nesse momento que tinha chegado a sua hora, que era a última coisa que via neste mundo. Era o fim. Mas disse-me que não pensou em nada de especial, que não viu a sua vida passar-lhe à frente dos olhos, nada do género. Disse que lamentou apenas não poder ver mais a sua mulher, uma vez que tinham tido uma bela vida. Era o seu único arrependimento. Olhou em frente, agarrou no volante e viu o carro do miúdo vir contra o deles. E depois não houve nada que ele pudesse fazer excepto dizer: "Anna! Segura-te, Anna"!
(...)
O que era mais deprimente para ele, depois de lhe termos assegurado que a sua mulher ficaria boa, que estava a recuperar para satisfação de todos, o que era mais deprimente era o facto de não poderem estar fisicamente juntos. De não a poder ver e estar com ela todos os dias. Disse-me que se tinham casado em 1927 e, desde essa altura, só tinham estado separados em duas ocasiões. (...) Em toda a vida juntos, só tinham estado separados em duas ocasiões, por um breve período de tempo. Imaginem só isto. Mas, meu Deus, ele estava tão sozinho sem ela. Digo-vos, ele tinha saudades dela. Nunca soube o que significava essa palavra, saudade, até ver o que estava a acontecer a este homem. Tinha saudades ferozes dela. Desesperava pela companhia da mulher, aquele velho. Claro que se sentia melhor quando eu lhe fazia o meu relatório diário da situação de Anna - que estava a curar-se, que ia ficar boa, era só uma questão de tempo. Agora já tinha tirado o gesso e as ligaduras, mas continuava extremamente só. Eu disse-lhe que, assim que ele fosse capaz, talvez daí por uma semana, o colocaria numa cadeira de rodas e o levaria corredor abaixo a visitar a mulher. Entretanto, viria visitá-lo e falaríamos. Ele contou-me um pouco do que tinha sido a sua vida no rancho, no final dos anos 1920 e durante o princípio dos trintas. (...) Contou-me que, no Inverno, nevava o tempo todo e, durante meses a fio, não podiam deixar o rancho porque as estradas fechavam. Para além disso, tinha de alimentar o gado todos os dias durante os meses de Inverno. Ficavam os dois sozinhos e isolados, ele e a mulher. Os miúdos ainda não tinham nascido, viriam mais tarde. Mês após mês, sozinhos, a mesma rotina diária, a mesma coisa de sempre, sem terem mais ninguém com quem falar ou alguém que os viesse visitar durante esses meses de Inverno. Mas tinham-se um ao outro. Tudo o que tinham era o outro. "O que é que faziam para se entreterem?", perguntei-lhe. Estava a falar a sério. Queria saber. Não conseguia imaginar como é que as pessoas podiam viver daquela maneira. Julgo que ninguém consegue viver assim hoje em dia. (...) Querem saber qual foi a resposta dele? Ficou ali deitado e pensou na pergunta. Levou o seu tempo. Depois disse: "Íamos aos bailes todas as noites". "O quê?", disse eu. "Desculpe, Henry", disse, e inclinei-me sobre ele, julgando que tinha ouvido mal. "Íamos aos bailes todas as noites, repetiu ele. Perguntei-me o que quereria ele dizer com aquilo. Não sabia do que estava a falar, mas aguardei por uma explicação. Ele pensou novamente naqueles tempos e depois disse: "Tínhamos uma Victrola e alguns discos, doutor. Púnhamos a Victrola a tocar todas as noites e ouvíamos os discos e dançávamos na sala de estar. Todas as noites fazíamos o mesmo. Às vezes estava a nevar lá fora e a temperatura caía abaixo de zero. A temperatura desce muito naquela zona, em Janeiro e Fevereiro. Mas nós ouvíamos os discos e dançávamos em meias grossas, na sala de estar, até termos tocado todos os discos. E depois eu acendia a lareira e desligava as luzes, todas menos uma, e íamos para a cama. Nas noites em que nevava, havia tanto silêncio lá fora que conseguíamos ouvir a neve a cair. É verdade, doutor", disse ele, "às vezes consegue-se ouvir a neve a cair. Se estivermos tranquilos e a cabeça estiver limpa e estivermos em paz connosco próprios e com todas as coisas, podemos deitar-nos no escuro e ouvir a neve. Tente ouvir a neve um dia", disse ele. "Às vezes neva por estes lados, não neva? Devia tentar, um dia desses. Seja como for, íamos ao baile todas as noites. E depois íamos para a cama debaixo de imensos cobertores e dormíamos quentinhos até de manhã. Quando acordávamos conseguíamos ver o nosso próprio hálito", disse ele.
- Quando ele recuperou o suficiente para ser colocado numa cadeira de rodas (...), uma enfermeira e eu levámo-lo pelo corredor abaixo até ao quarto onde a sua mulher se encontrava. Ele fizera a barba nessa manhã e pusera água-de-colónia. Estava vestido com o roupão e o pijama do hospital, ainda em convalescença, sabem, mas manteve-se muito direito na cadeira de rodas. Ainda assim estava nervoso como um gato, dava para ver. Quando nos aproximámos do quarto ganhou alguma cor e uma expressão de antecipação no rosto, uma expressão que não consigo descrever. Eu empurrava a cadeira e a enfermeira caminhava ao meu lado. Ela estava a par da situação, tinha percebido o contexto. As enfermeiras, sabem, já viram quase tudo, e poucas coisas as afectam, mas, naquela manhã, a própria enfermeira parecia nervosa. A porta abriu-se e empurrei Henry para dentro do quarto. A senhora Gates, a Anna, ainda estava imobilizada, mas conseguia mexer a cabeça e o braço esquerdo. Tinha os olhos fechados, mas abriu-os quando entrámos. Ainda estava enrolada nas ligaduras, mas apenas da zona pélvica para baixo. Empurrei Henry para o lado esquerdo da cama e disse: "Anna, tem companhia. Tem companhia, querida". Mas não consegui dizer mais nada. Ela exibiu um pequeno sorriso e o seu rosto iluminou-se. A mão dela surgiu de baixo do lençol. Tinha a pele azulada e cheia de contusões. Henry tomou a mão dela nas suas. Segurou-a e beijou-a. Depois disse: "Olá, Anna. Como é que está a minha querida? Lembras-te de mim?" Desciam-lhe lágrimas pelas bochechas. Ela assentiu com um aceno de cabeça. "Tive saudades tuas", disse ele. Ela continuou a acenar. A enfermeira e eu pusemo-nos a andar dali. Ela começou a chorar assim que saímos do quarto, e aquela enfermeira, digo-vos, é das duras. Foi uma experiência única. Depois disso ele foi levado ao quarto da mulher todas as manhãs e todas as tardes. Tratámos de tudo para poderem almoçar e jantar juntos no quarto dela. Nos intervalos ficavam sentados lado a lado e davam as mãos e falavam. O número de coisas que tinham para falar parecia não ter fim.


Raymond Carver . Principiantes - O que sabemos do amor

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