sexta-feira, 23 de agosto de 2013

# 76



- Pois, é essa a ideia que se costuma ter. De que aquilo que acabou é menos grave que o que está a acontecer, e de que o ter acabado nos deve aliviar. De que aquilo que aconteceu deve doer-nos menos que o que está a acontecer, ou de que as coisas são mais suportáveis quando já terminaram, por muito horríveis que tenham sido. Mas isso é o mesmo que acreditar que é menos grave alguém morto que alguém que está a morrer, o que não faz muito sentido, não achas? O irremediável e o mais doloroso é que tenha morrido; e o facto de o transe ter acabado não significa que a pessoa não tenha passado por ele. Como é que não havemos de ter presente esse transe, se foi o último que connosco partilhou, connosco que continuamos vivos. O que se seguiu a esse seu momento está fora do nosso alcance, mas quando teve lugar, pelo contrário, ainda estávamos todos aqui, na mesma dimensão, ele e nós, respirando o mesmo ar. Ainda coincidimos no tempo, ou no mundo. Não sei, não sei explicar-me. - Fez uma pausa e acendeu um cigarro (...) - Além disso, nada passa de todo, lá estão os sonhos, neles os mortos aparecem vivos e os vivos às vezes morrem-nos. Eu sonho muitas vezes com aquele momento, e então sim, estou presente, estou lá, sim, sei, estou no carro com ele e descemos os dois, e eu aviso-o porque sei o que vai acontecer-lhe, e nem assim pode escapar. Bom, bem sabes como são estas coisas, os sonhos são ao mesmo tempo confusos e exactos. Sacudo-os e basta acordar, em poucos minutos desvanecem-se, esquecem-me os pormenores, mas depois dou-me conta de que o facto permanece, de que é verdade, de que se passou, de que o Miguel está morto e que o mataram de um modo parecido com aquele que sonhei, embora a cena do sonho se me tenha diluído instantaneamente.


Javier Marias - Os enamoramentos

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