sexta-feira, 30 de agosto de 2013

# 91



E que sabemos nós acerca de nós mesmos, interroga-se. Cada dia menos, porque ainda por cima Celia estuda, de há um tempo a esta parte, a possibilidade de se tornar budista (...) A ele, não lhe escapa que esse budismo no horizonte pode acabar por se tornar um grande problema, assim como o foi aquela escalada de álcool, que levou Celia a ponderar seriamente deixá-lo. (...)
Ficaram imóveis os dois agora, como se a ambos preocupassem as mesmas questões e isso os tivesse paralisado. A vida, o álcool, o budismo e, sobretudo, o desconhecimento que têm um do outro. 
Ficaram os dois presos por um frio inesperado, como se de repente se tivessem dado conta de que, no fundo, são desconhecidos um para o outro, e também para eles próprios (...) 
Crê que combinou sempre indiscutivelmente bem essa relativa ignorância sobre Celia com a sua completa ignorância sobre si mesmo. Como comentou uma vez em La Vanguardia: "Não me conheço. O meu catálogo editorial parece ter ocultado para todo o sempre a pessoa que está por detrás dos livros que fui publicando. A minha biografia é o meu catálogo. Mas falta o homem que ali estava antes de me decidir a ser editor. Falto eu, definitivamente."
- Em que estás a pensar? - pergunta-lhe Celia.
Incomoda-o ter sido interrompido e reage de maneira estranha e diz-lhe que estava a pensar na mesa da sala de jantar e nas cadeiras da entrada, que são perfeitamente reais, e na cesta de fruta que pertenceu à sua avó, mas que, apesar disso, também está a pensar que qualquer louco poderia entrar pela porta a todo o momento e opinar que as coisas não são assim tão claras.
A seguir, fica consternado, pois dá-se conta de que complicou tudo desnecessariamente. A sua mulher, agora, está indignada.
- Quais cadeiras? - diz Celia. - Qual entrada? E que louco? De certeza que me escondes algo. Volto a perguntar-te. Em que estás a pensar? Será que voltaste a beber?
- Estou a pensar no meu catálogo - diz Riba, e baixa a cabeça. Desde que deixou de beber, são raras as discussões matrimoniais com Celia. Isso foi um grandessíssimo avanço nas suas relações. Antes, eram combates duros, e nunca quis excluir a ideia de que fora ele, com o seu maldito álcool, sempre o culpado. Quando as discussões eram mais graves, Celia costumava meter umas quantas coisas numa mala, que logo a seguir punha no patamar. Depois, se lhe dava o sono, ia para a cama, mas deixava a mala lá fora. Deste modo, os vizinhos ficavam sempre a saber quando eles tinham discutido: a mala era o reflexo do que se passara na noite anterior.


Enrique Vila-Matas - Dublinesca

Sem comentários:

Enviar um comentário