terça-feira, 1 de julho de 2014

# 135



A ambição do novo governador consistia em sanear as ruas e preservá-las de tudo quanto pudesse enodoar-lhes a honra; referia-se às ruas como a pessoas morais. De modo que, depois das prostitutas, dos vendedores que operavam nas esplanadas dos cafés, dos apanha-beatas e doutra malandragem menor, decidira atacar os pedintes, aquela raça pacífica mas tão enraizada que nenhum conquistador, antes dele, conseguira exterminar. Era como se ele quisesse varrer a areia do deserto.
Zeloso funcionário de um Estado forte, o agente da polícia avançou, por conseguinte, para o mendigo (a serena atitude deste último representava uma espécie de provocação) e começou a invectivá-lo segundo as regras de uma arte comprovada. O mendigo, porém, não reagia absolutamente nada às suas invectivas, apesar de serem para ele de muito mau agouro. Era um velhote extremamente encarquilhado, com uma barba cinzenta que lhe subia pelo rosto e cuja cabeça desaparecia debaixo de um monumental turbante. Os olhos fechados, debruados por um espesso traço negro, davam-lhe uma aparência equívoca e efeminada, a mais singular característica que podia ver-se num mendigo. Estava, além disso, vestido com andrajos multicolores de uma extrema fantasia, que melhor conviriam a um saltimbanco do que a um homem da sua condição. Aquele excêntrico velhote, antepassado de uma raça eternamente perseguida, parecia mergulhado num sono letárgico, que nem a barulheira ensurdecedora dos inúmeros veículos tentando passar pelo cruzamento conseguia perturbar. O polícia, vendo a inanidade dos insultos e ordens com que o mimoseava, acabou por lhe dar um pontapé, e logo outro, para o arrancar àquela inércia provocadora. Ia dar-lhe mais uma biqueirada quando viu o mendigo abandonar a sua pose primitiva e estatelar-se, adoptando a atitude altamente desdenhosa de uma criatura sem vida. Por momentos o polícia julgou tê-lo matado e ficou em pânico, pensando que perdera a presa. Um mendigo morto era menos que nada; constituía até um incidente capaz de o deixar sem emprego. Precisava dele vivo. Debruçou-se sobre o velho, agarrou-o pelo turbante e pôs-se a sacudi-lo como um louco, selvaticamente, como se quisesse ressuscitá-lo. Esta acção irreflectida fez jorrar o irreparável: de repente, a cabeça do mendigo saltou-lhe do pescoço com uma facilidade que parecia mágica, ficando colada ao turbante que o polícia continuava a agitar no vazio como um troféu sangrento. A multidão dos mirones, que desde há pouco se fora juntando em volta dos dois protagonistas da cena, soltou um grito horrorizado, manifestando logo a sua indignação num dilúvio de impropérios dirigidos ao agente da autoridade. Este, já sem o troféu, encarava aquela matilha uivante, que lhe chamava assassino, com o ar de uma pessoa aflita com fortes dores de barriga. Foi preciso algum tempo para aquela gente, inflamada pela carnificina matinal, perceber a marosca. Porque a verdade é que o mendigo de carne e osso não passava, afinal, de um manequim habilmente caracterizado por um artista consciencioso, e fora exposto naquele sítio respeitável com a evidente intenção de gozar com a polícia.


Albert Cossery - A Violência e o Escárnio

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