segunda-feira, 13 de outubro de 2014

# 200



Lembro-me de ficar surpreendido quando soube que as células do meu corpo não duravam a vida inteira e se renovavam regularmente (...) Não conhecia ao certo a frequência com que tais transformações ocorriam, mas o conhecimento da renovação celular dava azo a piadas do género: "Ela já não era a mulher por quem ele se apaixonara." Não me pareceu nada que fosse motivo para pânico: ao fim e ao cabo, os meus pais e avós deviam ter passado por uma, ou talvez duas, dessas renovações, e pareciam não ter sofrido qualquer fractura sísmica; a verdade é que continuavam a ser excessiva e inabalavelmente eles próprios. Não me lembro de pensar que o cérebro fazia parte do corpo e que, portanto, os mesmos princípios se lhe aplicavam. Poderia ter pendido um pouco mais para o pânico se tivesse descoberto que a estrutura básica e molecular do cérebro, longe de se renovar prudentemente quando e à medida que surge a necessidade, é de facto incrivelmente instável; que as gorduras e as proteínas se desagregam quase no instante em que são feitas; que cada molécula ao redor de uma sinapse é substituída de hora a hora e algumas de minuto a minuto. Que, efectivamente, o cérebro que tínhamos no ano passado terá sido reconstituído muitas vezes até agora.


Julian Barnes - Nada a Temer

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