segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

# 211



Nas origens e nas raízes do ocidente está a ira, indissociável da aurora da poesia que funda a nossa civilização: "Canta-me, ó deusa, do Peleio Aquiles a ira tenaz", diz o primeiro verso da Ilíada. O poema, que se identifica com a poesia tout court, é, antes de mais, a epopeia da cólera. Esta última surge de imediato como uma paixão negativa, portadora de desventura: diz-se que trouxe infinitos lutos aos aqueus, tendo arrastado para a morte tantos heróis e dado em pasto aos cães e aos pássaros os seus corpos. A ira de Aquiles não é a única: há a ira de Zeus pelo rapto de Helena, a de Apolo pela ofensa ao seu sacerdote Crises; a de Agamémnon, pela escrava que lhe é roubada. A cada paixão acresce o facto de ser ruinosa, mas neste caso a cólera ameaça arruinar toda uma grande colectividade, fazer perder a guerra a toda a Grécia coligada contra Tróia.
Não se trata, por outro lado, de uma cólera qualquer; a palavra grega menis - recorda Maria Graça Ciani - tem um valor sacral e indica a reacção a uma profunda e injusta ofensa à honra pública de um deus ou de um guerreiro, ou seja, a um profundo direito da pessoa, sancionado por um ritual ou por um costume vividos como uma lei religiosa. A ira é, pois, pelo menos inicialmente, justa e devida, uma resposta não só psicologicamente mas também e sobretudo eticamente motivada e necessária. Se ela entretanto é imoderada, desmesurada - a selvagem e incontrolável fúria de Aquiles - é fonte de desgraça. Nasce da fera reivindicação do próprio direito/dever, e portanto de si mesma, mas é perigosamente vizinha da loucura, da perda do autodomínio, como refere o provérbio latino ira brevis furor, a ira é um breve furor. Da cólera de Aquiles à loucura furiosa de Ajax, a passagem é breve.
Desde as origens, a civilização ocidental alerta para os perigos da ira, mas reconhece nela uma grandeza. Irritam-se heróis e deuses gregos, mas também o Senhor da Bíblia mostra a cada passo um rosto colérico: a sua cólera, que abate os soberbos e os arrogantes, é inseparável da sua justiça e é necessária à salvação do mundo. Até Jesus manifesta sem inibições a sua cólera, por exemplo quando desata a fustigar os mercadores do templo. O último dia - o dia do Senhor, da verdade - é um Dies Irae.


Claudio MagrisAlfabetos

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