quinta-feira, 29 de junho de 2017

# 329



"mas era necessário viver de outra maneira. E o que quer dizer viver de outra maneira? Talvez viver absurdamente para acabar com o absurdo, deixar-se cair em si mesmo com uma tal violência que a queda acabasse nos braços do outro. Sim, talvez o amor, mas a otherness dura-nos o que dura uma mulher, e além disso apenas no que a essa mulher diz respeito. No fundo não há otherness, apenas a agradável togetherness. É certo que já é qualquer coisa..." Amor, cerimónia ontológica, dadora de ser. Era por isso que lhe ocorria agora o que talvez lhe devesse ter ocorrido no princípio: sem se possuir a si mesmo não havia a possessão do outro, e quem é que se possuía verdadeiramente? Quem é que estava de regresso a si mesmo, da solidão absoluta que representa não contar sequer com a própria companhia, ter que enfiar-se numa sala de cinema, ou num prostíbulo, ou em casa de uns amigos, ou numa profissão absorvente, ou no casamento, para ao menos estar só-entre-os-demais? Era assim que, paradoxalmente, o cúmulo da solidão conduzia ao cúmulo do gregário, à grande ilusão da companhia alheia, ao homem só na sala dos espelhos e dos ecos. Porém, as pessoas como ele e tantos outros que se aceitavam a si mesmos (ou se rejeitavam, mas conheciam-se de perto) entravam no pior dos paradoxos, o de estar quiçá nos limites da alteridade e não poder atravessá-los.
A verdadeira alteridade feita de contactos delicados, de maravilhosos ajustes com o mundo, não se podia cumprir apenas a partir de uma parte; à mão estendida devia responder outra mão vinda de fora, do outro.


Julio Cortázar - O Jogo do Mundo (Rayuela)

Sem comentários:

Enviar um comentário