terça-feira, 11 de julho de 2017

# 343



Os cínicos e os moralistas estão de acordo quanto a colocar as voluptuosidades do amor entre os prazeres ditos grosseiros, entre o prazer de beber e o prazer de comer, declarando-os, contudo, visto que asseguram poder viver-se sem eles, menos indispensáveis que os outros. Dos moralistas espero tudo, mas espanta-me que o cínico se engane nesse ponto. Admitamos que uns e outros tenham medo dos seus demónios, quer lhes resistam, quer se lhes abandonem, e se esforcem por aviltar o seu prazer, a fim de lhe retirar o poder quase terrível, ao qual sucumbem, e ao seu estranho mistério, em que se sentem perdidos. Acreditaria nesta assimilação do amor às alegrias puramente físicas (supondo que existem) no dia em que visse um apreciador de bons petiscos soluçar de delícia diante do seu prato favorito, como um amante encostado a um ombro juvenil. De todos os nossos jogos é o único que pode perturbar a alma, o único também em que o jogador se abandona necessariamente ao delírio do corpo. Não é preciso que o bebedor abdique da sua razão, mas o amante que conserva a sua não obedece até ao fim ao seu deus. Em toda a parte a abstinência ou o excesso não aliciam senão o homem só: salvo no caso de Diógenes, cujas limitações e carácter de racional pessimista se evidenciam por si próprios, todo o procedimento sensual nos coloca em presença do Outro, nos implica nas exigências e nas servidões da escolha. Não conheço outra em que o homem se resolva por razões mais simples e inelutáveis, em que o objecto escolhido seja avaliado mais exactamente pelo seu peso bruto de delícias, em que o amador de verdades tenha mais possibilidades de julgar a criatura nua. A partir de um despojamento que se iguala ao da morte, de uma humildade que ultrapassa a da derrota e da prece, fico maravilhado ao ver renova-se sempre a complexidade das recusas, das responsabilidades, dos factores, das pobres confissões, das frágeis mentiras, dos compromissos apaixonados entre o meu prazer e o do Outro, tantos laços que é impossível quebrar e contudo tão depressa desfeitos. Este jogo misterioso que vai do amor de um corpo ao amor de uma pessoa pareceu-me suficientemente belo para lhe dedicar uma parte da minha vida. As palavras enganam, visto que esta - prazer - esconde realidades contraditórias, comporta ao mesmo tempo as noções de tepidez, doçura, intimidade de corpos, e as de violência, agonia e grito . A pequena frase de Possidónio sobre o atrito de duas parcelas de carne, que te vi copiar nos teus cadernos escolares com uma aplicação de menino ajuizado, não define o fenómeno do amor, assim como a corda que o dedo faz vibrar se não apercebe do milagre dos sons. Esta frase insulta menos a voluptuosidade que a própria carne - instrumento de músculos, de sangue e de epiderme, essa nuvem vermelha cujo relâmpago é a alma.
E confesso que a razão fica confundida perante o prodígio do amor, da estranha obsessão que faz que esta mesma carne, que tão pouco nos preocupa quando compõe o nosso próprio corpo, limitando-nos a lavá-la, a alimentá-la e, se possível, a impedi-la de sofrer, possa inspirar uma tal paixão de carícias simplesmente porque é animada por uma individualidade diferente da nossa e porque representa certos lineamentos de beleza sobre os quais, aliás, os melhores juízes não estão de acordo. Aqui, a lógica humana fica aquém, como nas revelações dos Mistérios. A tradição popular não se enganou ao ver sempre no amor uma forma de iniciação, um dos pontos em que o secreto e o sagrado se encontram. A experiência sensual compara-se ainda aos Mistérios, na medida em que a primeira aproximação dá ao não iniciado a impressão de um rito mais ou menos assustador, escandalosamente afastado das funções familiares de dormir, de beber e de comer, motivo de brincadeira, de vergonha ou de terror. Tanto como a dança das Ménades ou o delírio dos Coríbantes, o nosso amor arrasta-nos para um universo diferente, onde, noutros tempos, nos era interdito entrar e onde deixamos de nos orientar desde que o ardor se extingue ou que o prazer se desenlaça.


Marguerite Yourcenar - Memórias de Adriano

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