domingo, 18 de março de 2018

# 395


Assumir a observação que pressupõe a ironia com a captação de sinais que ela requer não me parece fácil nas condições em que o meu Outro divagava. No entanto, muito para com ele e para comigo, houve pelo menos uma vez em que essa intenção teve lugar. Com alguma clareza - ou quase - e de tal modo que ainda hoje tenho como certo que mesmo um farrapo de indivíduo a despojar-se de memória (e portanto de imaginação) podem despontar por vezes fragmentos de ironia como fragmentos culturais, se assim lhes é possível chamar, que são resíduos do passado que ele apagou.
Será uma ironia coitada, não digo que não, mas de qualquer modo uma ironia. Um esforço de resposta muito para ele, muito para se compensar da situação de desvantagem em que se pressente. Um esbracejar do seu lado crítico, direi agora, um esbracejar. Um iludir o caos da irreflexão.
A prova dum impulso de afirmação deste tipo está na minha resposta ao exercício que um dia me propôs a neurologista que dirigia o meu tratamento ("Onze menos nove quantos são?") apresentando-lhe a primeira solução - engenhosa, pretendia eu - que me veio à cabeça: "Nada, senhora doutora. Qualquer coisa noves fora é nada.""

José Cardoso Pires - De Profundis, Valsa Lenta

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