domingo, 25 de março de 2018

# 411


o corredor das portas abertas e das camas a meio sono deixou de ser a estrada sem limites que eu percorria nos tempos cegos. A sua brancura já não é de vazio e solidão nem de extensões de luz fria. Pelo contrário, é quase íntima, hospitalar, e, ponto importante, exibe doentes a desfilarem em parada de toilettes. Três ou quatro, não mais, e todos os dias os mesmos.
Olho-os. Passam por mim roupões acabados de estrear, chinelas de aconchegar sossegos; à saída duma porta, um infeliz de perna arrastada compõe o seu burguês casaco de quarto com alamares; mais adiante outro internado avança em robe com monograma e lenço de seda ao pescoço mas por razões que só a ele dizem respeito calça luvas de lã grosseiríssima; outro ainda, um tipo enorme de cabelo grisalho, mostra-se de peito aberto num quimono de judoca e calções colados à coxa, exibindo umas pernas ilustradas por adesivos que cobrem enxertos de artérias ou algo assim. Brilhos de presença e uniforme: desejo de sobreposição ao anonimato ou à marginalização para que nos empurra a doença?

José Cardoso Pires - De Profundis, Valsa Lenta

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