sexta-feira, 5 de julho de 2019

# 440


Imaginária ou não, a viagem tem de desenrolar-se na água, em terra ou no céu. De todas as características geográficas acessíveis ao escritor de viagens, talvez as ilhas sejam as mais procuradas, uma vez que reúnem os três espaços num cenário conveniente. (...) A vida numa ilha impõe ao observador uma percepção invertida do mundo. Em vez de o mar ser visto como algo rodeado por terra (...) um ilhéu vê a terra embalada pelo mar. Na geometria continental, a terra é a circunferência que enquadra o centro aquático; na de um ilhéu, ele e a terra, juntos, ocupam o centro, e são o ponto fixo de um universo em constante alternância de marés. Para os habitantes da terra, os mares e os lagos são como fendas ou buracos num vasto espaço doméstico; para o ilhéu, o mar tem algo do céu e a sua ilha tem as características de uma estrela, um ponto sensorial luminoso no grande caos primordial que o rodeia. Não é por acaso que, nos mapas, as ilhas parecem constelações. No século XV, o poeta espanhol Jorge Manrique afirmou que "As nossas vidas são os Rios que correm para o mar, que é a morte". Esta convergência inexorável não o é para o ilhéu, que encara as vidas como barcos vogando em águas mortais, até por fim ancorarem em terra firme. "Um corpo de terra rodeado de água": é assim que os ingleses definem uma ilha, sendo o "corpo", como um corpo humano, a corporização do eu, a essência de um lugar singular. Para o ilhéu, o mar que o rodeia só existe porque a sua ilha exige a sua existência.

Alberto Manguel - Diccionário de Lugares Imaginários

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