terça-feira, 31 de agosto de 2010

# 5

Lizzie entrou na minha vida muito cedo, sem que eu a conhecesse pelo nome. Era Ofélia e, nos meus dezasseis anos, já eu amava a quantidade de poder que se disfarça numa morte erotizada. Parti pela mão dela para o texto, o que fez que nunca usufruísse inteiramente de Hamlet. Fiquei sempre na margem do ribeiro e o fim não me deixava começar. O tempo da tragédia convergia com velocidade para aquela imagem e então parava, como a suicida. Lizzie Siddal flutua numa tela e Ofélia é sustentada à superfície sem que as águas deslizem, sem que o resto do que acontece ao afogado ocorra.
Assiste-se, na Tate Gallery, a essa suspensão da narrativa. As palavras de Shakespeare: "Não tardou muito que o seu vestido, tornando-se pesado com as águas que o iam embebendo, arrastasse aquele pobre despojo para a lodosa morte", não se cumprem. É certo que as pessoas têm pressa e se acumulam junto ao quadro, como quem gosta de confirmar uma atoarda. Mas, no momento da contemplação, um novo entendimento se estabelece: uma cerimónia, aquela intimação da arte, uma bolha que envolve o visitante e o pequeno quadro. Dois corpos chegam para o ocultar e há que sentar-se no banquinho em frente, pacientemente, à espera do momento em que o espaço se mostre de novo transponível.
É um momento humilde, pois deixamos tudo aquilo que sabemos para trás, como à entrada já deixámos as mochilas. Não vemos a perícia do pintor, nem a biografia do modelo, nem a massa poética de Shakespeare. O olhar dispensou o pensamento, soltou-se do devir. Podia comparar-se com o olhar de Deus, fora do tempo. Ou o do animal, que não projecta e que não sabe recordar. Mas o que temos neste olhar pertence ao humano, ao que só no humano paralisa e deixa perceber o mal da carne. Millais pintou aquilo que jamais tencionou pintar: o incitamento às emoções necrófilas.

(...)

O cenário de Ofélia era um trecho do Ewell, um pequeno afluente do Tamisa, que ali se alargava levemente, que ali se alargava levemente, perdendo força e dando às ervas tempo para lhe tomarem nutrientes e crescerem. Millais sentava-se numa elevação da margem, cruzando as pernas à oriental, mal abrigado à sombra diminuta do seu chapéu de sol. O vento, às vezes, desiquilibrava-o e ele ficava em risco de caír e experimentar as sensações de Ofélia, com a diferença de que o comeriam os moscardos, antes de o corpo se afundar no lodo. Mantinha ineficazes disputas com dois cisnes que pareciam nutrir um especial deleite em ocultar a vista ou em comer toda a vegetação que o pintor queria usar como modelo. Os animais olhavam filosoficamente para o gesticular da criatura que agitava no ar os seus objectos, na tentativa de os desalojar.

(...)

Jack continuou a trabalhar no cenário de Ofélia. alguns detalhes, como um rato morto com que ele já se debatia em Gower Street, não chegaram até nós. Na profusão de plantas, quase todas portadoras de símbolos tão ao gosto vitoriano, apareciam narcisos. Supor-se-ia que transportavam a mensagem conhecida, o seu anúncio dos piores augúrios. A verdade é que foram acrescentados tarde, já no estúdio de Londres, pois Millais achou que o quadro tinha falta de amarelo e mandou vir alguns de Covent Garden. O grande Tennyson fez-lhe saber que rosas bravas não podiam existir ao lado das bulbáceas e Millais acabou por apagá-las, arrependido por traír a natureza.

(...)

A verdade é que, sem o contributo da senhora Millais, "Ophelia" nunca seria o quadro que nós hoje conhecemos. O vestido bordado a pedraria, que John descobriu num bricabraque e pelo qual, apesar de velho e sujo, pagou uma quantia razoável, foi pessoalmente restaurado pela mãe. Também se deve a Emily a invenção da banheira em que Lizzie mergulhou. O filho queria ter à vista o efeito da água nos cabelos da jovem morta, da impregnação lenta no tecido, da refracção nos braços, já cobertos. Imóvel, a modelo permanecia naquela submersão quase total, no Dezembro londrino, ao desabrigo da ausência de calor. Mesmo no caso de um modelo anódino, a provação parecia desumana. Para que a água se mantivesse quente, Emily colocou lamparinas acesas, sob a folha de zinco, pelo chão.
Lizzie, que mal falava, submeteu-se. Por detrás do biombo, ao envergar pela primeira vez aquela túnica de fabrico grosseiro que serviu enquanto John lhe foi pintando o rosto, ela tocava, na aridez do pano, o simulacro de um encontro agressivo e voluptuoso. A senhora Millais, que a ajudava, estranhou o asseio das roupas interiores. Lizzie devia desnudar-se inteiramente para manter seco tudo o que trazia Não fazia perguntas. Receava denunciar qualquer estranheza que levasse Millais a rejeitá-la. Mas disso resultava uma atitude de alguém que aceita sem inquietação um sofrimento sacrificial.
Quando, já em princípios de Março, ela envergou o vestido de Ofélia, pressentiu que se acercava ali uma grandeza, porém não soube qual. Seria apenas empolgamento semelhante ao da criada que entreabre a porta do armário da senhora e, mesmo sem tirar o avental, encosta o fato ao corpo, a experimentar. O luxo decadente do vestido, o delicado tom de cinza contra o qual chispava intensamente o cabelo solto, induziam na tarde uma tristeza que não era real, que não passava de uma procuração da literatura. A criada que vinha trazer a água quente parou junto da porta, intimidada. Foi talvez ela a única que então se apercebeu de que o cenário realmente ocultava uma história de cadáveres.

(...)



Lizzie compreendeu que Mrs. Kincaid não era a acompanhante apropriada quando a levou à Grande Exposição. A mulher nem olhava para os quadros, preocupada como estava em desfrutar do desfile de vaidades femininas.
À mostra inglesa fora destinada uma das galerias laterais, pouco conveniente quanto ao espaço e à iluminação. Uma cortina separava-a da imensa exibição de arte dos franceses. Lizzie sabia bem o que buscava e a senhora Kinkaid incomodou-a. "Esta é você, não é?", disse, perante a Ophelia de Millais. Toda a gente contava aquela história. A mulher contorcia-se, excitada, e impedida, por intermitências, de ver o quadro na totalidade. Estava sempre a formar-se e a desfazer-se um grupo de observadores que, só pela cor diferente do cetim em cada saia, deixavam perceber que iam mudando.
A Exposição estava a chegar ao fim e Ophelia tornara-se num caso. Não era um tema fácil de tratar. O Art Journal considerou-o a peça menos praticável da peça de Shakespeare. Arthur Hughes apresentou a sua na mesma exposição que John Millais, em 1852. Millais cumprimentou-o, lamentando que a pintura estivesse num lugar a que chamavam "cela dos condenados", porque ficava quase inacessível. "Subi a uma escadaria para o ver", disse Millais. A sua gentileza nunca era das que levam à suspeita. Mas à Ophelia de Hughes faltava tudo aquilo que havia na Ophelia de Millais. Millais notou que o rio, em Hughes, não corria conforme à natureza. No entanto, o quadro dele não peca pelo erro mas sim pela ausência do pathos que dir-se-ia magneticamente fixado, e para sempre, na tela de Millais.
Na verdade, as Ofélias começavam ali, partiam todas da matriz que era o luxo e a dor daquela morta, do rosto descaído da modelo lembrando eternamente o seu desastre. Os críticos franceses censuravam a tendência dos quadros dos britânicos para a narrativa, em detrimento do sublime. E, no entanto, Ophelia, apreendendo no momento da imagem tudo o que lhe fora anterior, trazendo o tempo agarrado aos cabelos que flutuam, transcende a circunstância. Ela condensa todo o devastamento do amor, a vocação do feminino para a perda, o erotismo sacrificial. Na sua rectidão, Millais jamais se apercebeu de que o efeito produzido por aquele quadro era a necrofilia.
Muitas Ofélias se pintaram desde então. Espalhava-se uma espécie de volúpia. Porém essa em que Lizzie Siddal morre a sua bela morte de suicída, transformando o martírio em coisa humana, em acontecimento do amor, essa fundou uma imagem que segreda, que incita à culpa e ao prazer da culpa, que representa o jogo sexual na mais cruel das suas consequências.


Hélia Correia - Adoecer


3 comentários:



  1. Encontrei o seu Blog acidentalmente mas logo me apaixonei.
    Adorei o texto e decidi publicar parte dele no meu Blog acima referido.
    Dei-lhe todos os créditos e tenho o link para aqui.

    Voltarei, pode crer.

    Abraço

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  2. Existe uma só bela criança no Mundo... mas para cada uma delas existe uma Mãe.
    Beijinhos especiais neste dia, que é tão nosso.

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  3. Porque nunca publicaste????
    Que pena!

    Beijinhos

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