domingo, 21 de julho de 2013

# 48



(...) quem escolhe as poesias é ela, foi sempre ela, mas assim é que está certo, ela sabe, sabe imensas coisas, a Frau, conhece as horas da minha vida, dos dias da minha vida, como esses livros de horas que os frades usavam antigamente...a vida passa num ápice, sabes, mas como são lentas certas tardes de domingo, a Frau sempre soube escolher a poesia certa para o momento certo, quando eu cá vinha, obviamente, porque muitas vezes não aparecia, ou melhor, quase nunca lá estive, mas sabes o que ela me disse? Disse-me uma coisa que me deixou perturbado, quase comovido, é estranho, porque a comoção tem a ver com os humores de que somos feitos, e um mineral como eu já não tem humidade, e no entanto quando me disse isto com aquelas suas palavras tão avaras quanto ela, naquele italiano duro que sempre fingiu não ter aprendido capazmente nos mais de setenta anos que aqui passou, eu voltei a cara para as persianas para não deixar transparecer que esta pedra não secou completamente, e as ripas das persianas puseram-se a tremular, não pelo calor lá de fora, mas porque ela me disse, com o seu ar desabrido que, mesmo quando eu estava longe e corria perigo, ou ela assim julgava, todos os domingos, às cinco menos um quarto, ela ia até à sala, imaginava que servia o chocolate e dizia de si para si, em alemão, menino está na hora da poesia. E lia o poema que em seu entender me assentaria melhor nesse dia, como um viático ou um livro de horas...Tantas horas, escritor, tantas horas realmente. Quantos domingos haverá em setenta anos, melhor dizendo, em oitenta, quase?, faz-lhe as contas. Alguns milhares, assim a olho.

Antonio Tabucchi - Tristano Morre

Sem comentários:

Enviar um comentário