domingo, 28 de julho de 2013

# 54



(...) Virou-se para a mesa repleta de papéis, livros, e do meio daquela desordem, retirou um desenho de Nému. Pegou de novo na caneta e rabiscou por baixo do desenho: Subo à macieira sonhada pela criança, colho maçãs pintadas a marcador amarelo. E numa delas descubro a lagarta às riscas, como a tua camisola de marujo. 
Era quase noite, recordo-me, quando desci da árvore e a criança que foras antes de mim não tinha nome. Hoje, salto desta folha de papel para a noite, perco a infância na poeira dos dias.
Regresso lentamente à minha idade, e um astro refulge sobre o teu rosto adormecido.
Perdeste o nome como eu há muito perdera a infância. Mas quando o teu olhar me sulca e me fere o corpo e me devolve, por segundos, o que perdi, há um amanhecer feliz. E tens um nome, e não voltaremos a estar sozinhos.
Beno recordaria aquela macieira muito mais vezes. Era o melhor retrato de Nému, trazia-o sempre dobrado na carteira. (...) Um dia, mais tarde, olharia as poucas fotografias de Nému que guardara numa gaveta, e lembrar-se-ia certamente da noite de agonia em que resolvera queimá-las e não fora capaz de o fazer. Tinha chegado à conclusão de que nenhuma delas lhe transmitia a leveza, a lentidão, a quase etérea beleza, os gestos precisos de Nému. A macieira sim, movia-se para fora da folha de papel, parecia crescer, avançava no tempo, recuava, dava flor ou frutos, e de cada vez que a olhava era uma árvore diferente, viva.
As fotografias, ao contrário do desenho da macieira, tinham fixado instantes agora mortos, escondidos ou desfeitos pelo tempo da memória.


Al Berto - Lunário

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