domingo, 28 de julho de 2013

# 53



- O mais esquisito de tudo é que me mudou o pensamento (...) Não sei, é como se tivesse outra cabeça, ocorrem-me constantemente coisas em que nunca teria pensado (...) Como se fosse outra pessoa desde então, ou outro tipo de pessoa com uma configuração mental desconhecida e alheia, alguém dado a fazer associações e a sobressaltar-se com elas. Oiço a sirene de uma ambulância ou da polícia ou dos bombeiros e penso em quem estará a morrer ou a arder ou se calhar a asfixiar-se,e, no mesmo instante vem-me a ideia angustiosa de quantos ouviram a dos guardas que apareceram lá para deter o mendigo, ou o da emergência médica que assistiu e recolheu o Miguel na rua, tê-las-ão ouvido distraidamente ou inclusivamente sentindo-as como um incómodo, que maneira de apitar, sabes como é, aquilo que normalmente dizemos todos, que exagero, que estrondo, de certeza que não é caso para tanto. Quase nunca nos perguntamos a que desgraça concreta correspondem, são um som familiar da cidade e além disso um som sem conteúdo específico, uma simples incomodidade já vazia ou abstracta. Dantes, quando não havia muitas nem apitavam tão alto, nem se suspeitava que os motoristas as utilizavam sem motivo, para irem mais depressa e lhes abrirem caminho, as pessoas assomavam às varandas para saber o que estava a acontecer, e até confiavam que os jornais do dia seguinte o contariam. Agora já ninguém vem ver, esperamos que se afastem e que levem o doente, o acidentado, o ferido, o quase morto, para fora do nosso campo auditivo, para que assim não tenham que ver connosco nem nos ponham os nervos em franja. Agora já voltei a não ir ver, mas nas primeiras semanas depois da morte do Miguel não podia evitar chegar-me a uma varanda ou a uma janela e tentar avistar o carro da polícia ou a ambulância para acompanhar o seu percurso com o olhar até onde pudesse, mas a maior parte das vezes não os vemos de casa, só se ouvem, de modo que deixei de o fazer há pouco tempo, e no entanto de cada vez que uma toca ainda interrompo o que esteja a fazer e estico o pescoço e escuto até desaparecer, escuto-as como se fossem lamentos e súplicas, como se cada uma dissesse: "Por favor, sou um homem num estado muito grave que se debate entre a vida e a morte e além disso não tenho culpa, não fiz nada para me esfaquearem, saí do carro como em tantos outros dias e de repente senti um aguilhão nas costas, e depois outro e outro noutras partes do corpo e nem sequer sei quantos, dei-me conta de que estava sangrando por todos os lados e de que ia morrer sem me ter afeito à ideia nem o ter procurado. Deixem-me passar, suplico-vos, vocês não vão nem a metade da velocidade, e se houver a possibilidade de me salvar ela depende de chegar a tempo. Hoje é o dia dos meus anos e a minha mulher não sabe de nada, ainda deve estar à minha espera sentada num restaurante e disposta a festejá-lo, deve ter um presente para mim, uma surpresa, não deixem que ela dê comigo já morto."  (...) Eu nunca tinha pensado os pensamentos de ninguém, aquilo que outro possa pensar, nem sequer ele, não é o meu estilo, falta-me imaginação, a minha cabeça não dá para isso. E agora, pelo contrário, faço-o quase a todo o momento. Digo-te que o cérebro se me alterou, e é como se não me reconhecesse; ou se calhar, também isso me ocorre, como se não me tivesse conhecido durante toda a minha vida anterior, nem o Miguel me tivesse conhecido então: na realidade ele não teria podido e eu teria estado fora do seu alcance, não é estranho?, se a verdadeira fosse esta que associa coisas constantemente, coisas que há uns meses me teriam parecido díspares e não associáveis. Se sou aquela que sou a seguir à sua morte, para ele fui sempre outra diferente, e teria continuado a ser a que já não sou, indefinidamente, se ele tivesse continuado com vida.


Javier Marias - Os enamoramentos

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