sexta-feira, 5 de julho de 2013

# 14


Hoje, como nunca aconteceu antes: os mendigos, os vencidos, as mulheres com sacos de plástico, os vadios e os bêbedos. Abrangem uma larga escala, desde os que estão simplesmente despojados de tudo aos desgraçadamente destruídos. Para onde quer que nos voltemos, eles estão lá, tanto nos bairros bons, como nos maus.
Alguns pedem com uma expressão de orgulho: "Dê-me algum dinheiro", parecem dizer, "e em breve estarei outra vez no vosso grupo social, a vosso lado, andando para trás e para diante nas minhas ocupações diárias". Outros, deixaram de ter esperança de, alguma vez, abandonarem aquela vida de miséria. Estão estendidos nos pavimentos, de chapéu ou boné enfiado na cabeça, sem se darem sequer ao trabalho de olhar para cima, para os transeuntes, demasiado derrotados para agradecerem àqueles que lhes atiram uma moeda. Há ainda outros que tentam trabalhar, para merecerem o dinheiro que lhes dão: os cegos, que vendem lápis, os bêbedos que lavam o vidro dianteiro dos automóveis. Alguns contam histórias, que são, por vezes, o relato trágico das suas próprias vidas, como se desejassem dar aos seus benfeitores qualquer coisa a troco da sua bondade, mesmo que sejam palavras.
Outros são, de facto, talentosos. Por exemplo, o negro idoso que hoje dançava sapateado enquanto fazia malabarismos com alguns cigarros e que ainda tinha alguma dignidade, pertencera obviamente a uma companhia de variedades. Envergava um fato púrpura, uma camisa verde e uma gravata amarela, e uma boca com um sorriso fixo, vagamente recordado, dos seus tempos de palco. Há também os artistas que desenham a giz nos pavimentos, além de músicas, saxofonistas, guitarristas com os seus instrumentos eléctricos, violinistas. Ocasionalmente, podemos mesmo encontrar um génio, como aconteceu hoje comigo. Um tocador de clarinete, sem idade definida, usando um chapéu que lhe obscurecia o rosto, sentado, de pernas cruzadas, no pavimento, como se fosse um encantador de serpentes. Diante dele, estavam dois macacos mal tratados, um deles com uma pandeireta e o outro com um tambor. Com um deles a abanar a pandeireta e o outro a bater no tambor, provocando um som estranho e sincopado, o homem improvisava pequenas variações no clarinete, com o corpo a balançar, rígido, para trás e para a frente, energicamente mimando o ritmo dos macacos. Ele tocava cheio de energia e de talento, embelezando o trecho musical com sons animados e de execução variada, com uma sucessão de tons e semitons da escala diatónica menor, como se estivesse contente por estar ali com os seus amigos mecânicos, fechado no universo que tinha criado, sem levantar uma só vez o olhar. A música continuava interminavelmente, sempre a mesma. Contudo, quanto mais a escutava, mais difícil se tornava, para mim, afastar-me dela. Para penetrar naquela música, ser arrastado para o círculo da sua repetição...talvez aquilo seja um lugar onde, por fim, uma pessoa gostasse de desaparecer...
Mas os pedintes e os artistas constituem apenas uma pequena parte da população de vagabundos. Aqueles, são a aristocracia, a ética dos vencidos. Mas muito mais numerosos são os que nada têm para fazer, nem um sítio para onde ir. Muitos são alcoólicos, mas este termo não presta justiça à devastação que eles representam, carcaças de desespero, vestidos de trapos, de rostos feridos e a sangrar, arrastam-se pelas ruas como se arrastassem correntes. Adormecidos nos vãos das escadas, rastejando, de maneira automaticamente louca, no meio do tráfego, caindo nos passeios, parecendo estar em todos os lugares no momento em que os procuram. Alguns morrerão de fome, outros sucumbirão vítimas das intempéries, e ainda muitos outros apanharão pancada ou serão queimados ou torturados.
Por cada alma perdida neste inferno especial, há algumas outras encerradas na sua loucura, impossibilitadas de sair para o mundo que fica no limiar dos seus corpos. Mesmo que pareçam existir, não podem ser contadas como estando presentes. O homem, por exemplo, que anda por toda a parte com um par de baquetas de tambor, batendo com elas no pavimento com um movimento desvairado, sem sentido, rítmico, inclinando-se para a frente de modo desajeitado enquanto caminha ao longo da rua, batendo incessantemente no cimento. Talvez ele pense que está a fazer um trabalho importante. Talvez se ele não fizesse o que faz, a cidade desmoronar-se-ia. Talvez a lua saísse da sua órbita e caísse na Terra. Há ainda os que falam sozinhos, que murmuram, gritam, praguejam, emitem grunhidos, que contam histórias a si mesmo como se estivessem a contá-las a outras pessoas, lembro-me de um homem que vi hoje, sentado como se fosse um monte de lixo, em frente da Grand Central, com a multidão a passar por ele, enquanto gritava, cheio de pânico: "Terceiros-fuzileiros...a comer abelhas...as abelhas que saem rastejantes da minha boca!" Ou a mulher gritando para um companheiro invisível. "E se eu não quiser fazer? Qual é a merda que acontece se eu não quiser?!"
Há as mulheres com sacos de plástico e os homens com caixas de cartão, transportando os seus haveres de um lado para o outro, caminhando sem parar, como se fosse importante o sítio para onde vão. Há o homem embrulhado numa bandeira norte-americana. Há a mulher com uma máscara carnavalesca tapando-lhe a cara. Há o homem com um sobretudo em farrapos, com os sapatos embrulhados em trapos, transportando uma camisa impecavelmente engomada, pendurada num cabide e ainda no invólucro de plástico da lavandaria. Há o homem vestido com um fato normalmente usado pelos homens de negócios, descalço e com um capacete de jogador de futebol na cabeça. Há a mulher cujas vestes estão cobertas, da cabeça aos pés, com autocolantes das campanhas presidenciais. Há o homem que caminha com a cara tapada com as mãos, chorando histericamente e repetindo sem cessar: "Não, não, não. Ele está morto. Não está morto. Não, não, não. Ele está morto. Ele não está morto." 

Paul Auster - Cidade de Vidro - Trilogia de Nova Iorque

Sem comentários:

Enviar um comentário