sábado, 10 de agosto de 2013

# 59



Franny e Lane estavam a beber martinis. Quando lhes serviram as bebidas, dez ou quinze minutos antes, Lane tinha provado a dele e depois recostara-se na cadeira olhando de fugida à volta com uma sensação de quase palpável bem-estar por se encontrar (tinha a certeza de que ninguém poderia pôr isso em causa) no lugar adequado com uma rapariga de aspecto impecavelmente adequado - uma rapariga que não só era extraordinariamente bonita, como, mais ainda, não era demasiado categoricamente camisola de caxemira e saia de flanela. Franny notara esta pequena exposição momentânea e atribuíra-lhe o valor que tinha, nem mais nem menos. Mas por força de um qualquer acordo antigo e permanente com a sua psique, resolveu sentir-se culpada por tê-la visto, apreendido, e condenou-se a ouvir a conversa subsequente de Lane com uma cara de particular interesse.
Lane estava nesse momento a falar como alguém que tinha estado a monopolizar a conversa durante um quarto de hora ou mais e acredita ter encontrado uma cadência em que a sua voz não pode errar.
- O que eu quero dizer, para falar francamente - dizia - é que se poderia afirmar que o que lhe falta é testicularidade. Percebes o que estou a dizer?
Estava retoricamente inclinado para a frente, para Franny, o seu interessado público, com os antebraços a servir de apoio e o martini pelo meio.
- Falta-lhe o quê? - perguntou Franny.
Tivera de aclarar a garganta antes de falar, tanto fora o tempo que passara sem dizer nada.
Lane hesitou.
- Masculinidade. - disse.
- Já te tinha ouvido.
- Bom, era esse o motivo da coisa, por assim dizer...O que eu estava a tentar expressar de uma maneira bastante subtil - disse Lane, seguindo muito de perto o fio da sua própria conversa. - Quer dizer, meu Deus. Pensei sinceramente que ia ser como um balão de chumbo, e quando o recebi com esse maldito A com letras garrafais juro-te que quase caí de costas.
Franny voltou a aclarar a garganta. Ao que parecia, já tinha cumprido a condenação que a si própria impusera de ser uma ouvinte perfeita.
- Porquê? - perguntou.
Lane pareceu levemente interrompido.
- Porquê o quê?
- Por que pensaste que seria como um balão de chumbo?
- Já te disse. Acabei de te explicar. Este tipo, Brughman, é um grande especialista em Flaubert. Ou pelo menos era o que eu julgava.
- Ah - disse Franny. Sorriu. Bebeu um gole do martini. - Está óptimo - disse, olhando para o copo. - Estou muito contente por não ser vinte para a uma. Detesto quando são só gim.
Lane concordou com a cabeça.
- Seja como for, acho que tenho esse amaldiçoado trabalho no meu quarto. Se tivermos oportunidade durante o fim de semana, hei-de ler-to.
- Esplêndido. Vou adorar.
Lane concordou outra vez com a cabeça.
- Não é que diga nada de excepcionalmente sensacional, nem nada disso. - Mudou de posição na cadeira. - Mas, não sei, penso que a ênfase que coloquei no porquê da sua neurótica atracção pelo mot juste não estava nada mal. Isto é, à luz do que sabemos hoje em dia. Não só a psicanálise e essas tretas todas, mas até certo ponto também isso, é claro. Não sou nenhum freudiano, nem coisa que o valha, mas há certas certas coisas que não podemos classificar de freudianas com F maiúsculo e depois pô-las de lado. Quero dizer que de certo modo era perfeitamente justificado sublinhar que nenhum dos rapazes realmente bons, como Tolstoi, Dostoiévski e o próprio Shakespeare, por amor de Deus, eram assim tão espremedores de palavras. Escreviam, é tudo. Estás a perceber?
Lane olhou para Franny com uma certa expectativa. Parecia-lhe que ela o ouvira com uma atenção muito especial.
- Vais comer a azeitona ou não?
Lane passou os olhos fugazmente pelo seu copo de martini, depois voltou a olhar para Franny.
- Não - disse friamente. - Queres?
- Se tu não a comeres - disse Franny.
Percebeu pela expressão de Lane que tinha feito a pergunta errada.

(...)


Franny e Zooey - J. D. Salinger

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