segunda-feira, 26 de agosto de 2013

# 81



(...) Hugh vira um homem deitado, a dormir ao que parecia, por baixo da sebe do lado direito da estrada. Por pouco que não o iam atropelando. (...)
Jazia de costas, serenamente, com os braços estendidos na direcção da cruz de pedra da margem da estrada, a cuja sombra projectada, aí a meio metro de distância, poderia ter arranjado uma cama de relva. Perto, um cavalo pastava mansamente as folhas da sebe. (...)
Mas o homem, de facto, não dormia serenamente. O peito dele arfava como o de um nadador esgotado; o ventre contraía-se-lhe e dilatava-se-lhe rapidamente; um dos punhos, ora se abria, ora se fechava no pó da estrada...
(...)
Como ninguém se mexesse, Hugh começou a impacientar-se. (...) Olhou para o Cônsul numa expectativa; ele já estava naquele país havia tempo suficiente para saber o que convinha fazer. Além disso, o irmão era, entre eles todos, naturalmente o que melhor podia representar a autoridade. Contudo o Cônsul parecia perdido em reflexões. De repente, Hugh avançou impulsivamente e curvou-se para o índio. Um dos passageiros puxou-lhe pela manga:
- Já deitou fora o cigarro?
- Deita-o fora. - disse o Cônsul. - Por causa dos fogos florestais.
- , é proibido.
Hugh pisou o cigarro, e ia para se curvar mais uma vez para o homem quando o passageiro lhe tornou a puxar pela manga:
- No, no - disse, apoiando o dedo no nariz - proibiram isso también.
- Não lhe podes tocar, há que obedecer à lei - acudiu vivamente o Cônsul, que, naquele momento, mostrava ar de quem desejasse encontrar-se o mais longe possível daquela cena, aproveitando até para isso, se necessário fosse, o cavalo do índio. - Para protecção dele. Realmente é uma lei sensata. De outra maneira, podias ser acusado de cumplicidade.
A respiração do índio assemelhava-se ao mar batendo numa praia de seixos. Um pássaro solitário voava lá no alto.
- Mas o homem pode estar a mor... - balbuciou Hugh para Geoffrey.
- Só Deus sabe quanto isso me custa - replicou o Cônsul embora fosse verdade que ele ia para agir quando o pelado se antecipou. Pousou um joelho em terra e, veloz como o relâmpago, afastou o chapéu do índio.
Todos olharam com a maior atenção. Uma grave ferida, onde o sangue já quase coagulara, manchava-lhe um dos lados da cabeça. Viram-lhe o rosto  de lado. Tinha bigode e mostrava-se congestionado. Antes de se afastarem, Hugh viu uma porção de dinheiro: quatro ou cinco pesos de prata e uma mancheia de centavos, que havia sido muito bem arrumada debaixo da gola larga da blusa do homem, a qual escondia parcialmente o tal dinheiro. O pelado tornou a pôr o chapéu no seu lugar e, endireitando-se, fez com as mãos agora manchadas de sangue, um gesto significativo de impotência.
Há quanto tempo estaria estendido na estrada?
Hugh seguiu com o olhar o pelado que voltava para o autocarro e, depois, fitou mais uma vez o índio, cuja vida parecia ir fugindo enquanto os circundantes conversavam. (...)
Teria sido roubo, tentativa de assassinato ou ambas as coisas? O índio voltava provavelmente do mercado, onde teria vendido os seus produtos, com muito mais do que quatro ou cinco pesos escondidos no chapéu, com muito dinero; por isso, para não despertar suspeitas de roubo, o atacante teria deixado umas moedas. E talvez não fosse roubo afinal; talvez tivesse caído do cavalo? Era possível. Era impossível.
Sí, hombre, mas a polícia não teria sido chamada? Mas com certeza que já alguém teria ido buscar socorros. Chingar. Um deles devia ir buscar socorros, ir à polícia. Uma ambulância - a Cruz Roja. Onde seria o telefone mais próximo?
Mas era absurdo supor que a polícia não viesse já a caminho. Como é que os chingados podiam vir a caminho se metade deles estava em greve? Não, só uma quarta parte é que se encontrava em greve. Vinham a caminho, pois então? Um táxi? No, hombre, também esses estavam em greve. Mas haveria algum fundamento - interveio alguém - para o boato que se espalhara a respeito de a ambulância ter sido suspensa? Não era a Cruz Vermelha, mas a Cruz Verde. E, além disso, elas só trabalhavam depois de serem informadas. Falem com o Dr. Figueroa. Um hombre noble. Mas não havia telefone. Dantes, havia um telefone em Tomalín, mas estava avariado. Não, o Dr. Figueroa tinha um telefone novo e todo bonito. Pedro, o filho de Pepe, cuja sogra era a Josefina, que também conhecia - diziam - Vicente González, fora o próprio que o instalara, trazendo o fio pelas ruas. (...) quem quer que tinha colocado o índio à beira da estrada - embora, nesse caso, fosse difícil compreender porque o não havia de ter levado para a relva e para junto da cruz - quem lhe metera o dinheiro na gola, para maior segurança - mas talvez fosse o próprio dinheiro que para lá tivesse escorregado - quem quer que providencialmente havia atado o cavalo à árvore da sebe onde ele ia naquele momento pastando - contudo seria o cavalo realmente do índio? - quem quer que fosse e onde se encontrasse, uma vez que agira com tanta sabedoria e compaixão - deveria estar agora a procurar socorros.
Não havia limite para a ingenuidade daquela gente, embora o mais poderoso e último obstáculo quanto a fazerem alguma coisa pelo índio fosse o descobrirem que aquilo não lhes dizia respeito. (...) Não é nada comigo, mas convosco - diziam todos, abanando as cabeças e, no entanto, não, nem sequer é convosco, mas com outras pessoas quaisquer.


Malcolm Lowry - Debaixo do Vulcão

Sem comentários:

Enviar um comentário