sábado, 31 de agosto de 2013

# 97



Chaktour ia voltar ao trabalho quando avistou o rapaz. Este mantinha-se à entrada da oficina, com o molho de trevo que tinha comprado no mercado debaixo do braço. Olhava para o pai com um ar de reprovação nos olhos tristes, como que a recordar-lhe qualquer coisa de grave de que o homem já não se lembrava.
- Que me trazes aí, pequeno?
- É para o carneiro, pai.
- Qual carneiro?
Como é que não compreendia? O garoto estava quase a chorar, mas conseguiu conter-se e explicou tudo àquele pai embrutecido pela miséria, escravo de uma fatalidade rigorosa e cruel.
- O carneiro da festa, pai. Eu cá arranjei trevo. Agora só te resta comprar o carneiro.
Apesar de sujo, o rapaz era belo. Estava nu debaixo da túnica cor de terra. Trazia a tristeza em todo o corpo. 
Chaktour olhou o filho com espanto e piedade. Não disse nada. No seu espírito continuamente atormentado, já não havia lugar para uma nova dor. Sentia-se simplesmente esmagado pelo gesto do filho. Compreendia agora que nesta criança - da sua carne e do seu sangue - se estava a formar uma miséria consciente e real de que ainda não se tinha apercebido e que para sempre ficaria ligada à sua. O menino crescerá e a sua miséria irá crescer com ele até ao dia em que fraco por sua vez - pode um homem suportar sozinho a sua miséria? - criará um filho que partilhará o peso dela com ele. A única consolação do pobre é não deixar ao morrer um filho pródigo. A ignomínia que lega à descendência é inesgotável.
- A festa não é para nós, meu filho - disse ele. - Nós somos pobres.
O garoto chorou, chorou amargamente.
- Não me interessa; quero um carneiro.
- Somos pobres. - repetiu Chaktour.
- Somos pobres porquê? - perguntou a criança.
O homem reflectiu antes de responder. Depois de tantos anos de indigência tenaz, ele próprio não se lembrava por que eram pobres. Era uma coisa que vinha de muito longe, de tão longe que Chaktour já não se lembrava como tinha começado. Dizia a si próprio que a sua miséria com certeza nunca tivera começo. Era uma miséria que se prolongava para além dos homens. Apanhara-o desde nascença e ele logo lhe pertencera, sem a menor resistência, visto que lhe estava destinada muito antes de ter nascido, ainda na barriga da mãe.
A criança estava sempre à espera que lhe explicassem por que eram pobres. Deixara de chorar, mas ainda havia muitas lágrimas dentro de si, todas as lágrimas das crianças miseráveis cujos sonhos são traídos pela vida.
- Escuta, pequeno, vai-te sentar num canto e deixa-me trabalhar. Se somos pobres é porque Deus nos esqueceu, meu filho.
- Deus! - exclamou a criança. - E quando se lembrará ele de nós, meu pai?
- Quando Deus se esquece de alguém, é para sempre.
- Guardo à mesma o trevo - disse o garoto. Pegou no molho de trevo e pousou-o num canto da oficina, sentando-se em cima dele. Depois recomeçou a chorar, por ser pequeno e ser aquela a maneira de se revoltar contra a injustiça do mundo. Bruscamente, o rapaz percebia que estava sozinho na vida e tocava as coisas desconhecidas da aflição humana, da lastimável aflição humana.
O homem, esse, recomeçou a trabalhar. A visão do pequeno rosto devastado pelas lágrimas fazia-lhe mal. Sofria de um modo novo e terrível. Mas que importava o seu sofrimento e o de todos os homens do universo. O importante era que a criança deixasse de sofrer. Cada vez mais se dava conta desta verdade essencial. O menino! Quem se ocuparia de salvar o menino?
 


Albert Cossery - O Barbeiro Matou a Mulher - Os Homens Esquecidos de Deus

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