quarta-feira, 2 de agosto de 2017

# 349


Quando me volto de novo sobre esses anos julgo reencontrar a Idade de Ouro. Tudo era fácil: outrora os esforços eram compensados por uma satisfação quase divina. A viagem era um jogo: prazer regulado, conhecido, sabiamente preparado. O trabalho incessante não era mais do que uma forma de voluptuosidade. A minha vida, onde tudo chegava tarde, o poder, a felicidade também, adquria o esplendor do meio-dia pleno, o ensoalheiramento das horas da sesta em que tudo é banhado por uma atmosfera de ouro - os objectos do quarto e o corpo estendido ao nosso lado. A paixão culminada tem a sua inocência, quase tão frágil como qualquer outra: o resto da beleza humana passava à categoria de espectàculo, deixava de ser a caça de que eu tinha sido o caçador. Aquela aventura, começada vulgarmente, enriquecia mas simplificava também a minha vida: o futuro pouco importava; deixei de interrogar os oráculos, as estrelas passaram a ser apenas admiráreis desenhos na abóboda do céu. Nunca havia notado com tanta delícia a palidez da madrugada no horizonte das ilhas, a frescura das noites consagradas às ninfas é frequentemente visitaras pelas aves de passagem, o voo pesado das codornizes ao crepúsculo. Reli os poetas: alguns pareceram-me melhores que anteriormente, a maior parte, piores. Escrevi versos menos insuficientes que de costume.

Marguerite Yourcenar - Memórias de Adriano

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