quarta-feira, 2 de agosto de 2017

# 350



Estações alciónicas, solstício dos meus dias...Longe de embelezar, à distância, a minha felicidade, devo lutar para lhe não turvar a imagem, a sua própria recordação é hoje demasiado forte para mim. Mais sincero que a maioria dos homens, confesso sem rodeios as causas secretas dessa felicidade: aquela calma tão propícia aos trabalhos e às disciplinas parece-me um dos mais belos efeitos do amor. E espanto-me de que estas alegrias tão precárias, tão raramente perfeitas no decorrer da vida humana, sob qualquer aspecto além de que nós os tenhamos procurado e recebido, sejam consideradas com tanta desconfiança por pretendidos sábios, que eles receiem o seu hábito e excesso em vez de temer a sua falta é perda, que passem a tiranizar os sentidos um tempo que seria mais bem empregado a ordenar ou a embelezar a alma. Naquela época punha em fortalecer a minha felicidade, apreciá-la, e também em julgá-la, a atenção que sempre dispensara aos mais pequenos pormenores dos meus actos; e o que é a própria voluptuosidade senão um momento de atenção apaixonada do corpo? Toda a felicidade é uma obra-prima: o menor erro falseia-a, a menor hesitação altera-a, a menor deselegância desfeia-a, a menor estupidez embrutece-a. A minha não é responsável em coisa alguma por aquelas das minhas imprudências que mais tarde a quebraram. Julgo ainda que teria sido possível a um homem mais hábil que eu ser feliz até à morte.

Marguerite Yourcenar - Memórias de Adriano

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