quinta-feira, 3 de agosto de 2017

# 351


Teria podido, por meio do divórcio, desembaraçar-me dessa mulher que não amava; homem privado, não teria hesitado em fazê-lo. Mas ela importunava-me muito pouco, e coisa alguma, na sua conduta, justificava um insulto público. Jovem esposa, melindrava-se com os meus afastamentos (...) Assistia agora, sem parecer aperceber-se disso, às manifestações de uma paixão que se anunciava duradoura. Como muitas mulheres pouco sensíveis ao amor, compreendia mal o poder; essa ignorância excluía ao mesmo tempo a indulgência e o ciúme. Inquietar-se-ia apenas se os seus títulos ou a sua segurança estivessem ameaçados, o que não era o caso. Não lhe restava nada daquela graça adolescente que outrora me havia brevemente interessado: aquela espanhola prematuramente envelhecida era grave e dura. Dava-me satisfação que a sua frieza a tivesse impedido de ter amante; agradava-me que ela soubesse usar com dignidade os seus véus de matrona que eram quase véus de viúva. Gostava muito que figurasse nas moedas romanas um perfil de imperatriz tendo no reverso uma inscrição, umas vezes ao Pudor, outras à Tranquilidade. Acontecia-me pensar naquele casamento fictício que, nas festas de Elêusis, se realizou entre a grande sacerdotisa e o hierofante, casamento que não é uma união, nem mesmo um contacto, mas que é um rito e, como tal, sagrado.

Marguerite Yourcenar - Memórias de Adriano

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