sábado, 17 de março de 2018

# 388


Desse momento em diante vi-o, de corredor em corredor, a ser conduzido aos puzzles da tecnologia clínica, chapa a chapa, registo a registo, análises, electrocardiografias, exames da fala é da escrita, um TAC., uma inspecção às carótidas, mas o que é que eu estou a fazer aqui, perguntava ele quando o deixavam sozinho com a mulher.
Se nessa altura ainda falava com clareza ou se já tinha começado a desmantelar as palavras com o silabar consonântico que toda a gente fingia ignorar, não sei, não posso dizer. Mas por intuição ou pelo que quer que fosse ele devia ter alguma percepção dessa afasia porque muitas vezes cortava a frase ou parava de se exprimir, fazendo um gesto de desistência com um sorriso de resignação. Deixem, não vale a pena, era o que aquilo significava. Dava a ideia de que por enquanto sabia o que pretendia comunicar mas que já não comandava as palavras.
Continuo a segui-lo. A princípio houve uma ou outra situação em que nos confundimos e fomos um só. Situações raríssimas, devo acrescentar, breves clarões de consciência. Mas em menos de nada já ele se tinha perdido de mim e ia hospital fora a arrastar uma névoa.

José Cardoso Pires - De Profundis, Valsa Lenta

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