domingo, 18 de março de 2018

# 389



O relatório neurológico foi terminante: acidente vascular cerebral de gravidade muito acentuada, um coágulo de sangue que tinha subido (do coração?) até à zona nobre do cérebro, bloqueando duramente a artéria. Não era um problema hemorrágico, antes fosse, e por isso não havia o recurso à cirurgia com largas perspectivas de solução, explicou à Edite um especialista do Serviço de Neurologia. Assim, acrescentou ele, o caso apresentava-se bastante difícil, um caso de isquémia com recuperação lenta e frequentemente incompleta. Do ponto de vista motor, nada que justificasse preocupações, o doente bastava-se a si próprio. Mas o centro da fala e da escrita estava profundamente afectado e podia conduzir a uma sobrevivência em incomunicabilidade total.
Incomunicabilidade, pois. Incomunicabilidade total. Nem voz, nem escrita e nem leitura tão-pouco.
Morte cerebral, foi com esta expressão que a Agência Lusa passou a notícia à imprensa para o outro lado dos muros do Hospital de Santa Maria. Morte branca, aponto eu ao alto desta página em que estou a reconstruir passo a passo esse Outro que, de mão na mão com a Edite, se encaminha para o quarto onde vai ser internado.
Vai sem ver, percebe-se. Vai, foi. Seguiu. E quando lá chegou não sei se já estava entregue por inteiro à sem-vontade que o alheava do que acontecia nele e à volta dele, não sei, não faço ideia.

José Cardoso Pires - De Profundis, Valsa Lenta

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