domingo, 18 de março de 2018

# 390


no quarto que lhe tinham destinado havia dois vultos a espiá-lo em duas camas. Viam-no também sob lençóis mas de rosto ao alto e a sorrir. A sorrir? Seria um traço pálido na palidez geral que se supôs dirigido à enfermeira que o estava a ligar ao soro, embora não a olhasse sequer. Ou um sorriso para com ele e mais ninguém, outra hipótese. De qualquer maneira, estava imóvel e a sorrir, imagine-se. Assim o viam os dois doentes com quem ele ia ficar e assim o estou eu a descrever, passados dois anos sobre essa hora: branco, branco, em luz gelada e com a mulher à cabeceira a segurar-lhe a mão. Preso a ela mas todo voltado para a distância.
Assim, também, o foi encontrar uma jovem médica que o veio observar com as primeiras perguntas no tom de quem vem com recado pensado.
Perguntas a aviar, é bom que se diga, pelo menos foi o que lhe pareceu a ele uma abordagem daquelas, e como tal, com respostas prontas é que a devia despachar. Estropiavas ou não, respostas prontas e o rosto eternamente apontado para uma vastidão qualquer.
Seria realmente uma vastidão, um espaço ermo, para onde ele olhava? Pouco importa. Horizonte, interrogação ou nada, era nessa direcção que ele estava a responder ao exame e infelizmente com o descaso e a irresponsabilidade que eram de prever, parecia anotar a médica pela maneira de o escutar, pelo insólito dos desacertos com que ele correspondia ao diagnóstico que lhe tinha sido atribuído, confirmava a médica com o silêncio do olhar, claro, tudo certo, tudo conforme, "agora", despediu-se ela, "o que é preciso é pôr-se bom depressa para voltar a escrever. De acordo?"
Escrever?
O que restaria de mim no homem que ficou para ali estendido à espera de coisa nenhuma?


José Cardoso Pires - De Profundis, Valsa Lenta

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