sexta-feira, 5 de julho de 2019

# 438



O maior explorador é alguém que não deseja verdadeiramente explorar, que pretende voltar para casa e aí ficar, mas que, no entanto, está condenado (...) a procurar sempre novos horizontes. Por essa razão, a Odisseia é o poema emblemático da exploração, quer voluntária, quer involuntária, com todas as suas falsas partidas e finais ilusórios. A invocação, no início da obra, em que o poeta pede à sua Musa que lhe fale "do homem astuto que tanto vagueou (...)" assemelha-se mais a uma coda para o leitor, como se a Musa tivesse terminado a sua tarefa, a busca fosse infinita e Ítaca não passasse de mais um lugar de paragem.
O primeiro livro da Odisseia diz-nos repetidamente que decorreu algum tempo desde que Ulisses partiu de Tróia, tendo entretanto sofrido numerosos percalços, e que nem a mulher nem o filho sabem do seu paradeiro. Pelo contrário, as últimas páginas deixam-nos de respiração suspensa, com a batalha por Atenas interrompida e a promessa implícita de uma futura viagem, profetizada pela sombra de Tirésias. Não só nem o começo nem o fim são definitivos, como cada uma das aventuras de Ulisses aborda a história do regresso de um ponto de vista diferente, apresentando repetidos conflitos e uma ameaça reiterada com novas personagens. O regresso a casa do herói é eterno: os prodígios que descobre de certo modo já se encontram dentro dele. Como todos os exploradores, Ulisses regressa a qualquer coisa que parece nova, mas que se revelará familiar. O rei Salomão, como observa o filósofo Francis Bacon, reconheceu que "não há nada de novo debaixo do sol" e, retomando a máxima de Platão segundo a qual "todo o conhecimento é recordação", Bacon acrescenta outra: "Toda a novidade não passa de esquecimento". É esse o destino do rei de Ítaca.
Condenado a percorrer uma estrada muito sinuosa, Ulisses vê-se confrontado com múltiplos perigos, que são também possibilidades disfarçadas (...) A cada vez, Ulisses tem de encontrar uma solução sábia e firme para a situação difícil em que se encontra, na esperança de que aquela seja a última vez e sabendo que não o vai ser. Exploramos menos pela liberdade de escolher as coisas do que pela de as excluir.
Quando visita as almas do Mundo dos Mortos, Ulisses encontra Tirésias, o adivinho, que lhe diz que, se ultrapassar as dificuldades que se lhe depararem e não molestar o gado de Apolo, ele e a sua tripulação poderão regressar a casa sãos e salvos. Porém, de regresso à Ítaca, Tirésias vaticina que Ulisses irá "partir de novo". As palavras de Tirésias, como Dante as interpretou, acrescentam profundidade e um aspecto trágico à história do regresso, tornando-a de certo modo infinita (...) Ulisses (...) na Divina Comédia (...) diz:

(...) "não fostes feitos a viver quais brutos
mas a seguir virtude e conhecença"

Lançar âncora em qualquer porto sonolento; imitar a rotina dos animais que nascem, comem, procriam e morrem; ignorar a virtude e rejeitar o conhecimento: ao que parece, um regresso a Ítaca resumir-se-ia a isto. Para escapar a esse triste destino, Ulisses e os seus homens fazem-se ao mar naquilo a que Dante chama (...) um vôo louco; (...) o seu ânimo depressa se converte em lágrimas quando uma tempestade desaba sobre eles, um redemoinho se abre diante da proa e (...) mergulham em águas desconhecidas. (...) Porém, antes (...) que  (...) Poseidon (...) tivesse a sua vingança triunfante, recordemos que (...) Ulisses nunca desiste de querer saber o que está "retro al sol" - anseia por ver o que se encontra para lá do mundo conhecido pelos humanos, "il mondo sanza gente". Ulisses quer continuar a explorar.


Alberto Manguel - Diccionário de Lugares Imaginários

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