sexta-feira, 5 de julho de 2019

# 442



a verdadeira geografia imaginária das ilhas tem início com a Utopia, de Thomas More. (...) crente convicto na teoria de que os fins justificam os meios e, por conseguinte, defensor acérrimo da tortura, santo canonizado apesar da sua natureza sedenta de sangue e dos seus fanáticos preconceitos raciais, More inventou o supremo lugar imaginário: o lugar que não ficava em parte nenhuma. (...) compôs num latim requintado o relato de uma ilha governada por uma espécie de comunismo liberal, onde não existia propriedade privada, onde havia liberdade religiosa e educação para todos, homens e mulheres. Contudo, Utopia não é uma sociedade igualitária. As mulheres sujeitam-se à autoridade dos maridos, os filhos à dos pais, os jovens à dos mais velhos, e a escravatura não foi abolida. More publicou o livro em 1516, sob a supervisão do seu amigo Erasmo, atribuindo assim um nome (que significa literalmente "nenhum lugar") a um género eu originaria inúmeras sociedades imaginárias. (...) Utopia cria o primeiro arquétipo insular: uma ilha cujo sistema sugere um sistema ideal, didáctico - simultaneamente positivo e negativo - a raiar a alegoria, que pode servir (ou não) para pór em causa os nossos próprios sistemas de governo.

A 25 de Abril de 1719 foram publicados dois volumes com o título (...) A vida e Estranhas Aventuras Surpreendentes de Robinson Crusoé de Iorque, marinheiro, que pretendiam ser um relato verdadeiro, "Escrito pelo Próprio".  (...) Segundo o autor secreto, Daniel Defoe, não se tratava de ficção: ele inventava crónicas verdadeiras, na tradição dos historiadores repudiados por Heródoto. Pouco importava o livro não ser o testemunho fimável que pretendia ser: o carácter imediato da narrativa pungente foi suficiente para persuadir os leitores do seu rigor; o narrador pode ser fictício, mas os acontecimentos que narra são verdadeiros.
Cerca de 12 anos antes de o livro ser publicado, um marinheiro chamado Alexander Selrick optara por ficar sozinho na ilha desabitada de Juan Fernández (...) sendo resgatado cinco anos mais tarde (...). A história de Selrick inspirou Defoe, que a desenvolveu e melhorou, transformando o relato do marinheiro numa crónica da fundação de uma sociedade primitiva (...) Robinson é o homo primus, um Adão que instaura todas as artes e aptidões humanas (...) A sua ilha torna-se, assim, o modelo primordial de todas as instituições humanas e, com o seu desenvolvimento singular, revela as possibilidades intrínsecas de uma sociedade plural.
(...)
Embora, no fim, Robinson regresse ao seu país, os leitores sabem que, na realidade, ele nunca abandonará a sua ilha: nela, é senhor do mundo, dono dos seus domínios: noutro sítio qualquer, não é ninguém. Fosse qual fosse o desejo de Selkirk, Robinson não pode ser resgatado. Jorge Luis Borges, no seu soneto Alexander Selkirk (...), atribuiu estas palavras ao Robinson original, à chegada a Inglaterra:

Já não sou aquele que eternamente
Contemplava o mar e seu profundo ermo
E como farei para que esse outro saiba
Que estou aqui, a salvo, entre a minha gente?

Alberto Manguel - Diccionário de Lugares Imaginários

Sem comentários:

Enviar um comentário