sexta-feira, 5 de julho de 2019

# 443



Thomas More quis situar a sua sociedade ideal (algo que não considerava inatingível) numa ilha que, embora sem localização física, fosse plausível. Defoe foi mais concreto: Juan Fernández, a ilha das tribulações de Alexander Selkirk, existe, e o escritor limitou-se a apropriar-se dela e a disfarçá-la para dar ao seu Robinson maior liberdade. O seu sucessor, Jonathan Swift, por seu lado, inventou tudo: cenário, aventuras e situação. As Viagens de Gulliver (...) apresentam um rol de ilhas inteiramente imaginárias na sua geografia e história, nos seus atributos físicos e na sua cultura. O bispo que criticou o livro de Swift a pretexto de "estar repleto de mentiras improváveis" (..,) faz honra ao poder de ficção de Swift e mostra até que ponto um bom leitor também precisa de ser crédulo.
Na ilha de Lilliput, tudo é minúsculo, motivo pelo qual todas as discussões e batalhas (...) parecem tão ridículas. Em Brobdingnag tudo é enorme, desde os seus habitantes até à sua visão do mundo; por isso o rei, depois de ouvir Gulliver contar a história da História da Europa, é forçado a emitir o seguinte parecer: " Não posso deixar de concluir que o grosso dos vossos nativos é a raça mais perniciosa de pequenos vermes odiosos de que a natureza já sofreu e que rasteja sobre a superfície da Terra." Na ilha de Laputa (...) e em Lagado, Swift ridiculariza projectos científicos fátuos, em Glubbdubdrib (...) zomba das mentiras dos historiadores e do nosso desejo de imortalidade; na ilha dos Houyhnhnms, contrapõe à cultura de cavalheiros requintados e civilizados aos brutais Yahoo!'s, que se assemelham a nós (...)
As ilhas de Swift são espelhos deformadores do nosso próprio mundo mas são igualmente novos mundos por direito próprio.


Alberto Manguel - Diccionário de Lugares Imaginários

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