sexta-feira, 5 de julho de 2019

# 445



A geografia imaginaria, ao contrário do género que se encontra em enciclopédias e atlas, não tem fronteiras. Os seus lugares existem num espaço ilimitado e ocupam um espaço de abundância infinita. Permitem a criação de sociedades perfeitamente eficazes e perfeitamente atrozes, lugares onde tudo é possível (segundo regras secretas e rígidas) e onde nos podemos ver como outras pessoas, na nossa condição humana de eternos sobreviventes de um naufrágio ou como cidadãos de um Estado feliz ou desditoso.
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A geografia imaginaria também nos permite resolver problemas políticos complexos, ou pelo menos reflectir melhor sobre eles, no mundo em que vivemos.
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A 4 de Novembro de 2003, 14 refugíamos curdos e quatro marinheiros indonésios chegaram numa pequena embarcação à ilha de Melville, em águas australianas (...) com intenção de requerer asilo político.
Ao saber desse acontecimento (...) John Howard, primeiro-ministro da Austrália, tomou uma decisão drástica: decidiu cortar os laços da nação com Melville e, em nome do seu governo, renegou a ilha (...) Em 2001, o governo australiano já eliminara a ilha de Natal da sua zona de migração a fim de poder exportar para as suas praias inóspitas várias centenas de imigrantes ilegais.
Se o mapa do nosso mundo pode ser modificado pela imaginação (...) a fim de ser povoado com lugares ricos em possibilidades fantásticas, porque não empreennder a abordagem oposta e livrarão-nos de alguns outros que são inconvenientes, perigosos ou ineficazes? Os australianos agiram movidos pela desumanidade, pela injustiça e pelo egoísmo; nós podemos agir por humanidade, ecologia e inteligência. A escritora canadiana Anne Lafontaine sugeriu o seguinte: esperar até que os dirigentes políticos se reúnam numa das suas frequentes cimeiras em qualquer pequena ilha mediterrânea e então, de uma forma rápida e ousada, eliminar essa ilha dos mapas. Imaginemos então, no lugar dessa ilha um ponto vazio, uma mancha, do tamanho de uma picada de insecto, uma parte invisível do mar.


Alberto Manguel - Diccionário de Lugares Imaginários

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