sexta-feira, 5 de julho de 2019

# 447



Nem todas as viagens têm a ver com pesquisa ou exploração.
(...)
Além de Ulisses amaldiçoado por Poseidon e de Caim amaldiçoado por Jeová, conhecemos viajantes eternos como (...) o Holandês Voador (...). Sem dúvida que a impossibilidade de parar a descansar é uma imposição dura, mas também pode ter as suas vantagens: percorrer o mundo num espírito de descoberta, ver novas paisagens ou revisitar outras antigas, tomar contacto com costumes estrangeiros ou com culturas desconhecidas, são actividades (...) apresentadas desde há séculos como a melhor forma de educação possível.
Mas há um lado negativo neste conceito generoso de viagem eterna. (...) a viagem assume a forma de uma fuga. O Judeu Errante é afastado da sua pátria por ser vítima de perseguição, passar fome e não poder trabalhar. Tem de fugir à ameaça dos campos de concentração, dos gulags, das violações e das chacinas. Tem de fugir da chegada de exércitos, da invasão de multinacionais, da ameaça de deflorestação, do perigo de secas e inundações, do praga de ditaduras militares ou religiosas. Tem de atravessar planícies e montanhas, de se fazer ao mar em embarcações frágeis (...) Tem de tentar imaginar que na outra margem estarão pessoas mais afortunadas, que o acolherão de braços abertos, que lhe permitirão levar uma vida decente (...)
A poetisa argentina Alejandra Pizarnik, bem versada em viagens imaginárias, escreveu o seguinte:

E se a alma perguntasse "Ainda é longe?", teríamos de responder:
Do outro lado do rio, não deste, mas do que está mais além.

Neste sentido, toda a viagem, imaginária ou real, é sequencial. Nenhuma permite que o explorador regresse ao ponto de partida. Mal se faz ao mar, o porto modifica-se atrás de si: surgem novos edifícios em ruas redesenhadas e aí vão viver novas pessoas rodeadas por uma paisagem que também mudou. Mesmo na memória, a nostalgia reconfigura o mundo que ficou para trás (...) O explorador - viajante, imigrante, exilado, pária, está condenado a recordar um lugar que já não existe. Nesse sentido, toda a nossa geografia é imaginária.



Alberto Manguel - Diccionário de Lugares Imaginários


Sem comentários:

Enviar um comentário