sábado, 19 de agosto de 2023

# 537

 

O inventor das primeiras placas escritas talvez se tenha apercebido das vantagens destes pedaços de argila sobre a capacidade de memória do cérebro: em primeiro lugar, a quantidade de informação que se podia armazenar nas placas era infindável - era possível continuar a produzir placas ad infinitum, ao passo que a capacidade de memória do cérebro é limitada; em segundo lugar, as placas não requeriam a presença do armazenador de memória para consultar a informação pretendida. Subitamente, algo intangível - um número, uma notícia, um pensamento, uma ordem - podia adquirir-se sem a presença física do transmissor da mensagem; como que por magia, era possível imaginar, registar e transmitir através do espaço e para além do tempo. Desde os mais remotos vestígios da civilização pré-histórica que a sociedade humana procurara ultrapassar os obstáculos geográficos, a irreversibilidade da morte, a erosão do esquecimento. Com um só acto - a incisão de uma imagem numa placa de argila - esse primeiro escritor anónimo conseguiu realizar todos esses feitos aparentemente impossíveis.

Mas a escrita não foi a única invenção criada no momento daquela primeira incisão: deu-se uma outra criação ao mesmo tempo. Como o objectivo do acto de escrita era preservar o texto - ou seja, lê-lo - a incisão criou simultaneamente um leitor, papel que se configurou ainda antes de o primeiro leitor adquirir uma presença física. Enquanto aquele primeiro escritor congeminou uma nova arte gravando marcas num pedaço de argila, uma outra arte se tornou tacitamente aparente, uma arte sem a qual as marcas teriam sido completamente desprovidas de sentido. O escritor era um produtor de mensagens, o criador de signos, mas estes signos e mensagens necessitavam de um mágico que os decifrasse, lhes reconhecesse o sentido e desse voz. A escrita requeria um leitor. 


Uma História da Leitura - Alberto Manguel 

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